– Até aquele momento, eu não tinha parado para conversar sobre isso nem com a minha mãe.
O relato é de Julia*, 30 anos, ao descrever a primeira vez que entrou em um consultório para tratar um assunto que havia evitado até então: sua vida sexual.
Casada desde os 19 anos, há um ano ela procurou um ginecologista ao sentir desconforto físico durante as relações sexuais com o marido. O médico a encaminhou para um serviço de atendimento sexológico gratuito no Hospital Materno Infantil Presidente Vargas, em Porto Alegre. O tratamento com a sexóloga, que já completa 10 sessões, tem caráter de redescoberta. Com o acompanhamento, Julia conta que está no caminho para superar questões emocionais, tabus e as dificuldades de ter prazer durante o sexo:
– Eu sempre guardei todas essas questões para mim. Não tinha aquela entrega durante o sexo, achava que era aquilo mesmo, fazia sem prazer. Fui me dando conta de que deveria ser dona do meu próprio corpo.
A busca por esse sentimento conquistado por Julia é o que leva mulheres a procurarem a terapia sexual quando enfrentam alguma disfunção nessa área. Muitas vezes ignorado, o problema pode levar anos até que seja tema no consultório médico.
Não são poucas as mulheres que relatam dificuldades para ter uma vida sexual satisfatória. Segundo estudo liderado por Carmita Abdo, fundadora e coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP, em 2008, cerca de 48% das brasileiras apresentam alguma queixa sexual ao longo da vida, e o tempo que elas demoram, em média, para buscar ajuda clínica é entre três e quatro anos.
– É impossível ser infeliz sexualmente e ser feliz na vida. Os problemas sexuais afetam a autoestima, aumentam a insegurança no relacionamento e dificultam a aproximação de outras pessoas, já que o sexo passa a ser um momento de tensão. São várias as repercussões negativas – afirma a ginecologista e sexóloga Jaqueline Brendler.
Uma questão de saúde pública
Sexo é saúde, e saúde também é sexo. Esse conceito já é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS): a sexualidade está oficialmente entre os critérios para se avaliar a qualidade de vida de um indivíduo.
Tudo funciona como um ciclo: disfunções sexuais podem ser sinal de outras doenças, e dificuldades na cama levam à angústia, à frustração e até mesmo à depressão. Em pouco tempo, os efeitos após uma noite de sexo satisfatório são visíveis: a mulher se sente mais em sintonia com o parceiro, os laços afetivos se estreitam, ela se percebe mais bonita.
– Uma saúde sexual favorável implica questões de saúde mental. A curto prazo, é visível, a mulher já se sente mais poderosa. A longo prazo, melhora o relacionamento com o parceiro. Pacientes em tratamento psiquiátrico, por melhorarem a questão sexual, apresentam também melhoras como um todo – explica a sexóloga e ginecologista Sandra Scalco, que coordena o ambulatório de sexologia no Hospital Materno Infantil Presidente Vargas, na Capital.
A iniciativa de oferecer o serviço gratuitamente para mulheres de todo o Estado, segundo Sandra, contribui para sustentar que o assunto é questão de saúde pública, mas ainda é visto como tabu pela sociedade.
Educação repressiva e cultura do medo
O campo da sexualidade feminina começou a virar objeto de pesquisa apenas na metade do século 20. Mas foi a partir da década de 1970 que o discurso sobre o assunto começou a mudar. Com maior conquista da liberdade sexual, abriu-se uma porta para investigar o que elas preferem e como elas sentem prazer. O sexo, antes tratado apenas pelo viés da questão reprodutiva, começou a ganhar um olhar mais voltado para a satisfação pessoal e com o foco na saúde.
Mesmo assim, a sociedade ainda conserva preconceitos e expectativas sobre as mulheres que influenciam a ideia que elas têm sobre o sexo.
– Ainda predominam os fatores culturais, a educação sexual repressiva e a cultura de medo imposta nas meninas quando são adolescentes de que o hímen é algo frágil que deve ser preservado a qualquer custo, que aquilo é o “lacre” da mulher. A educação sexual das mulheres é carregada com valores repressivos, e ela, depois de adulta, vai reaprender a sexualidade de um jeito mais saudável, diferente do que foi ensinado por influência da família ou da escola – analisa a sexóloga Jaqueline Brendler.
A sexóloga analisa o contexto de criação entre os dois gêneros: durante a fase de desenvolvimento, a anatomia sexual das mulheres é frequentemente ignorada. Enquanto que a dos homens é tratada com menos pudor. Nesse cenário, as mulheres são desencorajadas a se conhecerem.
A falta de informação sobre o próprio corpo e o medo, ou até a vergonha de se descobrir, reprimem as mulheres. Isso é visto pelo número de mulheres que nunca se masturbaram, que chega a 36%, segundo a pesquisa Mosaico Brasil. A dificuldade para ter orgasmo, uma das principais queixas femininas, tem como um dos fatores a falta de autoconhecimento.
– Normalmente, a falta de conhecimento do próprio corpo permeia as dificuldades sexuais. Mas existem fatores emocionais e de construção do significado do sexo para cada uma delas. Por isso, dizemos que é multifatorial. A ausência de confiança no sexo oposto, por exemplo, pode dificultar que a mulher se entregue mais – diz Jaqueline.
O que é a disfunção sexual?
É caracterizada quando a dificuldade sexual causa estresse, angústia ou incômodo. Pode ser dor durante a relação ou dificuldade para ficar excitada. A falta de desejo, por exemplo, não é sinônimo certeiro de que alguma coisa está errada.
Entende-se que há disfunção apenas quando a situação passa a prejudicar o bem-estar mental da mulher. Além disso, o problema deve estar persistindo há pelo menos seis meses.
As causas para as disfunções são multifatoriais e incluem componentes biopsicossociais (biológicos, psicológicos e sociais). Vivências, experiências e educação sexual influenciam no seu desenvolvimento. Vítimas de violência sexual, por exemplo, têm grande propensão a terem disfunções sexuais ao longo da vida.
Mulheres em períodos como o pós-parto, a menopausa e o climatério podem ter maior desconforto ou outras queixas devido à oscilação hormonal: com a queda da produção de estrogênio, a vagina pode se tornar mais ressecada e ter menor capacidade de lubrificação, o que dificulta a penetração.
Vítimas de violência sexual ou com traumas relacionados à própria sexualidade também têm maiores chances de terem dificuldades para retomarem uma vida sexual saudável.
Como funciona a terapia sexual?
Sexólogos são os profissionais preparados para fazer esse tipo de terapia. Eles são procurados geralmente por quem apresenta alguma disfunção ou quer ter uma vida sexual com mais qualidade. Profissionais de diferentes áreas podem se especializar no tema, como médicos ginecologistas, psiquiatras e psicólogos. Mas há também outros métodos para esse tipo de terapia.
– É bastante comum que os profissionais sigam a linha de terapia cognitiva-comportamental focada no assunto sexual. Boa parte dos pacientes com quem eu trabalho já tem um equilíbrio nas outras áreas da vida, mas tem um problema sexual que persiste – afirma Jaqueline.
Nessa linha de terapia, vários aspectos da vida da paciente são abordados: a criação, as vivências, os relacionamentos. Além disso, o terapeuta pode indicar um “tema de casa”, atividades para ajudar no tratamento, que variam com a necessidade de cada mulher, mas podem incluir exercícios com o parceiro e técnicas de relaxamento.
A duração desse tipo de terapia é curta em comparação à psicoterapia convencional. Pode durar, em média, de seis meses a dois anos.
– É um conceito de terapia breve. Com 10 encontros, muitas vezes, a mulher já tem uma resposta. Eu fiz um levantamento com as pacientes que atendo e, na terceira ou quinta consulta, em média 50% já apresentava alguma melhora – revela a sexóloga Sandra Scalco.
Principais disfunções sexuais femininas
Falta de desejo
A falta de vontade de procurar o parceiro ou a parceira para uma atividade sexual é um dos principais motivos que levam as mulheres a buscar ajuda. É o chamado desejo hipoativo. A mulher passa a não criar mais fantasias sexuais e perde a vontade de fazer sexo.
Nas últimas décadas, um dos nomes que mais marcaram as pesquisas sobre o desejo sexual feminino foi a canadense Rosemary Basson. A especialista em saúde da mulher quebrou o paradigma que era construído com base no conhecimento do desejo sexual masculino. Para o homem, primeiro vem o desejo, que muitas vezes ocorre pelo estímulo visual. Depois, vem a ereção, que é a parte da excitação. Nas mulheres, principalmente com relacionamentos mais longos, o ciclo nem sempre funciona assim.
– Sempre se acreditou que a resposta sexual da mulher era igual a do homem, que ela precisava ter desejo para ir para a relação. Mas descobriu-se que os motivos que levam ela a transar são diversos. Pode ser a relação afetiva que ela tem com aquela pessoa. A partir desse jogo de sedução, em que ela começa a se excitar, é que ela vai ter desejo – explica a psicóloga e sexóloga Lucia Pesca.
Há disfunção, alerta a ginecologista Sandra Scalco, quando as mulheres, por mais de seis meses, entram e saem da relação sem ter se excitado e o desejo se manteve baixo. As causas, como nas demais dificuldades sexuais, podem ser psíquicas, como estresse, depressão e experiências negativas relacionadas ao sexo.
Segundo Heitor Hentschel, ginecologista e sexólogo, há uma série de medicamentos que também podem afetar o desejo sexual. Entre eles, estão os antidepressivos, de uso comum da população.
– Alguns medicamentos alteram muito a produção hormonal, o que repercute no corpo. Todas as medicações moduladoras da parte emocional, diuréticos e até mesmo boa parte dos hormônios, como a pílula anticoncepcional, podem diminuir a função sexual e alterar o desejo, reduzindo a excitação e tornando impossível o orgasmo – diz o especialista.
Dificuldade de ter orgasmo
A falta de orgasmo durante a relação sexual é uma das disfunções que mais incomodam as mulheres. Segundo a sexóloga Sandra Scalco, a inabilidade para conseguir chegar lá pode, inclusive, contribuir com o desenvolvimento de outros problemas sexuais.
– É um grande fator de desestímulo a longo prazo. Às vezes, vemos mulheres com desejo diminuído aos 40 ou 50 anos, mas a fonte do problema era a anorgasmia (ausência de orgasmo), e elas poderiam ter sido tratadas ainda jovens – exemplifica.
Os especialistas alertam que não é só o estímulo das partes íntimas que leva ao ápice do prazer. A capacidade de concentração, de autoconhecimento, de saber orientar o parceiro ou a parceira são fundamentais nessa hora. O estresse, por exemplo, pode dificultar que a mulher se mantenha focada na hora do sexo.
– Sexo é emoção pura. A cabeça tem de estar envolvida, se não, dificulta – afirma a sexóloga Jaqueline Brendler.
O orgasmo também fica cada vez mais longe quando há mitos e preconceitos na hora do sexo, que comprometem a entrega da mulher. O mais comum é que elas atinjam o ápice com estímulos no clitóris, onde há maior concentração de fibras nervosas. Outras partes do corpo também levam ao prazer se estimuladas, como o bico dos seios, a pele e a nuca.
– Se ela não souber como se tocar, se não se masturbou antes, como vai saber conduzir o parceiro? Além disso, o aspecto emocional tem grande importância: o envolvimento com aquela pessoa é o ingrediente principal, ter um afeto especial torna a mulher mais confiante e solta para se entregar – avalia Lucia Pesca.
Além da sensação de empoderamento e satisfação, durante o orgasmo, são liberadas substâncias como as endorfinas, que aliviam o estresse e aumentam o prazer.
Dor e desconforto
É normal que mulheres relatem dor na hora da penetração. Essa sensação desagradável durante a relação pode significar a presença de três problemas: vaginismo, dispareunia ou transtorno da excitação sexual. As três têm como principal sintoma a dor.
A dispareunia está relacionada a fatores orgânicos. Quando a penetração é dolorida, o médico deve ser informado para dar seguimento a exames que verifiquem a presença de doenças como endometriose, hérnias genitais ou tumores.
Já o vaginismo indica que há uma contratura involuntária da vagina, o que torna dolorosa a penetração.
– Algumas pessoas, por algum trauma, podem sofrer de vaginismo depois de terem começado a vida sexual. O medo de transar também pode causar o vaginismo – explica a sexóloga Jaqueline Brendler.
Quando uma mulher se excita, a vagina se torna mais profunda, larga e lubrificada, para se adaptar ao pênis. O transtorno da excitação sexual pode ocorrer por fatores físicos, orgânicos ou psicológicos. A excitação emocional libera substâncias vasodilatadoras, responsáveis por permitir a preparação da vagina. Quando a mulher não consegue se excitar, a vagina aumenta pouco e não sai da situação de repouso. Se não há doenças que poderiam afetar essa função, como o diabetes ou reduções nos níveis de estrógeno no período da menopausa, o transtorno pode ter fundo emocional ou psicológico.
– Mulher também “brocha” emocionalmente. Se ela está no meio da relação e o telefone começa a tocar, não há garantia de que vai se manter – diz Jaqueline.
*O nome foi trocado a pedido da entrevistada.
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