Pergunta : Raquel ( Universidade Federal de Minas Gerais )
Prezado Dr Mario, primeiramente gostaria de agradecer pela contribuição contínua que o site oferece informando sobre as especialidades. Sem dúvida é um serviço que ajuda muito nesta tão difícil escolha da residência médica.
Estou no último ano da graduação e estou em dúvida em relação à infectologia e medicina de família e comunidade. Como se trata da minha segunda graduação, características como mercado (no momento atual é no futuro), estabilidade e qualidade de vida são de grande importância na minha decisão. Gostaria de saber mais sobre essas características referentes a estas duas especialidades médicas.
Desde já agradeço a atenção.
Resposta:
A dúvida nesse momento é normal e muito comum. Serão muitos anos de atividade profissional e por isso a escolha deve ser feita de forma mais racional.
Na escolha, além de analisar a qualidade de vida e a remuneração que a especialidade vai te permitir é fundamental avaliar como é o dia a dia da especialidade, ou seja tipos de pacientes e tipos de patologias com as quais vai lidar.
Mais algumas informações sobre essas especialidades podem te ajudar na escolha :
A infectologia foi uma das especialidades que mais progrediu em termos de status nos últimos anos. Anteriormente rotulada como especialidade que tratava somente de doenças raras e crônicas como esquistossomose , calazar e doença de chagas, com o aparecimento da AIDS e novas doenças como Influenza H1N1, Zica, Dengue, evoluiu para um aumento significativo da clientela.
Além disso, desde a morte do presidente Tancredo Neves, vitima de infecção hospitalar, passou a ser exigido dos hospitais a criação das comissões de controle de infecção hospitalar com normas rígidas de funcionamento, abrindo um mercado interessante em termos de consultoria para os profissionais dessa especialidade.
O mercado ainda é carente de profissionais, tanto na área de consultórios como nas solicitações de pareceres em pacientes internados em aptos, enfermarias e unidades de tratamento intensivo.
Esse é o principal mercado em cidades grandes ( consultórios próprios que até independem de convênios porque lida com casos especiais, centros de saúde, pareceres em pacientes internados com infecções resistentes e consultoria na organização e acompanhamento de CCIHs )
No momento, as epidemias de Dengue, Zica, Febre Amarela em varias cidades tb estimula o mercado de infectologia.
Em cidades do norte do Brasil, o controle de doenças como febre amarela e malária tb é um mercado promissor para esses especialistas na área de saúde publica principalmente.
Pela AIDS, pelas novas doenças infecciosas que vão continuar aparecendo periodicamente, pelas CCIHs e pelo consequente aumento rápido da clientela, a DIP passou a ser uma das melhores especialidades do momento.
A Medicina de Família e Comunidade é a especialidade que mais poderia influenciar na saúde de uma população, já que a maior parte dos pacientes que procuram atendimento médico, o fazem com problemas banais que com um boa formação médica de base poderiam ser resolvidos por qualquer médico.
A abordagem familiar em relação a aspectos de saúde e mesmo em relação a aspectos psicológicos, de saúde mental, prevenção de doenças, sedentarismo, adaptação escolar, saúde bucal, crescimento e desenvolvimento…pode ter um resultado espetacular na saúde e inserção social de uma família.
No entanto, por mais que todos julguem importante esses aspectos, a maioria dos médicos acabam optando por escolher uma especialidade considerada por eles como mais técnica e de mais status.
O sistema de saúde do Brasil ( público ou privado ) que permite acesso direto aos diferentes especialistas por parte da clientela, termina por reduzir a provável clientela do médico de família e do generalista.
Abaixo reproduzo artigo publicado na Rev Med (São Paulo). 2012;91(ed. esp.):39-44
Por que escolher a Medicina de Família e Comunidade? Ademir Lopes Júnior
Graduação em Medicina pela Universidade de São Paulo, Consultor da Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde do Ministério da Saúde, Membro da Câmara Técnica de Medicina da Família e Comunidade, Delegado do CREMESP.
O que é a especialidade?
A Medicina de Família e Comunidade (MFC) é a especialidade médica que cuida das pessoas ao longo do tempo, independente do problema de saúde, do sexo, da idade, ou do órgão afetado pela doença.A MFC visa o atendimento integral das pes- soas, famílias e comunidade por meio decompetên- ciaspreventivas e terapêuticas.
O médico de família e comunidade (Mfc) é um especialista em atenção primária à saúde, portanto, deve ter formação geral que lhe permita ser o primeiro contato do paciente sempre que esse procure o servi- ço de saúde. É o pro ssional que coordena o cuidado ao longo do tempo com resolutividade de 85% a 95%, além do manejo de sintomas inespecí cos.
O fortalecimento da MFC está diretamente vin- culado a organização do sistema de saúde. Países com sistemas de saúde mais justos para toda a popu- lação têm forte atenção primária, com priorização do número de médicos com formação geral em relação aos demais especialistas.
No Brasil, embora a MFC seja reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina desde 1981, apenas após a criação da Estratégia de Saúde da Família (ESF), em 1994, a especialidade tornou-se mais conhecida.
Por que escolhi essa especialidade?
Entrei na FMUSP em 2000. Não tive nenhu- ma disciplina sobre atenção primária na graduação -apenas apuericultura no Centro de Saúde-Escola do Butantã e uma visita domiciliar no PSF da Zona Leste. Aliás, lembro até hoje dessa visita: um paciente com
Doença de Parkinson.
A intensa grade curricular da FMUSP pouco permitiavivenciaroutros espaços. Por isso, “tranquei” a faculdade para conhecer um pouco da USP: entre o 3o e 4o ano parei por 6 meses o curso enquanto frequenteicomo ouvinte disciplinas nas Faculda- des de Jornalismo, Psicologia e História.Durante o internato, “tranquei” mais três vezes: um mês de estágio de Medicina Tropical em Santarém, um mês de Geriatria no Canadá, e 15 dias de Oftalmologia e Otorrinolaringologia no HC-FMUSP (na época não haviam esses estágios). Ao todo, adiei em 9 meses minha formatura, e ainda restaram 2 meses para estudar para a prova de residência.
Apesar de já ter ouvido sobre a MFC no Brasil, apenas no Canadá conheci a prática de um Mfc. Isso me encantou: ser um pro ssional com ampla visão clínica evasto e variado repertório de pacientes. Mas como seria aqui no Brasil?
Para isso, fui visitar o programa de residência de MFC do Grupo Hospitalar Conceição no Rio Gran- de do Sul, um dos mais antigos do Brasil. Observei uma consulta não agendada de um paciente com lombalgia. A consulta foi muito diferente da queixa- conduta que eu estava habituado!
O médico já conheciao paciente, perguntou o que lhe preocupava, entendeu suas dúvidas, investi- gou e orientou os hábitos posturais eacordou as pos- sibilidades terapêuticas. A integralidade do cuidado se tornavareal ali na minha frente e em 10 minutos! Com o tempo, duranteminha residência, descobri que isso só era possível com a longitudinalidade e uso de“tecnologias leves”como a Medicina Centrada no Paciente ou do Teorema de Bayes.
Medicina de Família e Comunidade – Edição Especialidades Médicas.
Nesse estágio, também observei a discussão sobre a dinâmica familiardeum paciente acamado com múltiplas morbidades cujacuidadora com de- pressão nãoaderia às orientações. O que parecia um caos, cou claro e passível de intervenção com o uso das ferramentas da abordagem familiar. E, assim, foi possível construir um plano terapêutico que ostornassem mais autônomospara seus próprios projetos de vida.
Acompanhei pacientes em cuidados paliativos, pré-natal, crianças com asma. A MFC não era uma simples somatória de outras especialidades, havia algo próprio! Além disso, em várias situaçõesna mi- nha própria família e amigos (classe média) percebia o quanto fazia falta um pro ssionalpara coordenar o cuidado dos meus avós, pais e irmão.
Na minha graduação já havia pensado em fazer Pediatria, Geriatria, Psiquiatria e Infectologia. Mas como escolher? Conhecia inúmeros psiquiatras e pediatras com 30 anos de formação, mas nenhum Mfc! O que seria da MFC em 2040? Qual seria o risco de uma especialidade quasetodavinculada apenas ao sistema público? Teria alguma perspectiva nan- ceira? Teria reconhecimento pelos meus pares que sempre desprestigiavam essa especialidade?
Mas a MFC era uma especialidade em franca ascensão. Eu poderia integrar a prática clínica com outras áreas do conhecimento. Gostava disso!Eu poderia conversar com as pessoas, conhecendo seus hábitos e história de vida nas suas casas e cotidiano. Havia grande diversidade de atuação: de insu ciência cardíaca aos dé cits motores, de lesões de pele aos problemas de linguagem, das angústias com o ciclo de vida às crises psicóticas, da promoção à saúde à caquexia.
Os Mfc que conhecia erambastante requisi- tados nas universidades e serviços de saúde. Os programas de residência em MFC eram os que mais haviam se expandido no país. O ganho salarial, em- bora não fosse o maiorentre as especialidades, era
razoável e com boas garantias. Com o tempo, per- cebi que a MFC me oferecia ampla possibilidade de atuação no sistema públicoou privado, nas grandes ou pequenas cidades, nas comunidades ou casas, nas instituições de saúde ou ensino. Havia muita tecnologia envolvida,seja no uso das habilidades comunicacionais oude informática e telemedicina. Havia um novo espaço a se construir e eu poderia ter muita satisfação nesse processo.
A MFC, en m, não era uma especialidadede pobrespara pobres! Conheci experiências exitosas no próprio Brasil e quase todas as críticas ou descréditos à MFC vinham de outros especialistas que pouco ou nada conheciam da área. A ESF se consolidava, tanto que em 2011 a revista The Lancet publicou um número inteiro dedicado aos bons resultados da estratégia brasileira.
Resolvi arriscar e participar da criação de um novo momento no país. Apesar dos desincentivos de TODOS os preceptores dos estágios do meu internato, optei pela MFC. Estaria participando da construção de uma especialidade que, apesar de reconhecida desde 1981, apenas agora era mais evidente no cenário nacional.
Durante a residência, fui para Portugal, conheci médicos da Espanha, Inglaterra e Bélgica. Percebi o quanto os MFC eram reconhecidos em outros países. Desde então, inúmeras oportunidades se abriram para mim, seja no ensino, gestão ou assistência à saúde.
Por fim, certamente essa é uma especialidade a ser considerada por aqueles que gostam da clínica ampliada, da relação médico-paciente, que acham interessante o corpo humano em sua totalidade, bem como para aqueles se interessam pelosvários mo- mentos de vida em seus vários aspectos e contextos. Se você gostar de dessa os, vale à pena conversar com alguém que fez a residência em MFC, certamente serão lhe apresentadas oportunidades e vários caminhos a serem construídos e desvendados.
Concluindo : embora exista carência de bons médicos de saúde da família e ser essa uma especialidade ao mesmo tempo apaixonante (em termos de relacionamentos pessoais) e ao mesmo tempo enfadonha ( pela repetição de pequenos problemas ), o mercado de trabalho é ingrato para essa especialidade.
Sucesso
Mário Novais
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