Antibióticos são fármacos essenciais para a saúde humana, responsáveis por milhões de vidas salvas desde a sua introdução na prática médica. Esses medicamentos também propiciam melhor qualidade de vida a pacientes que apresentam infecções menos graves, mas que podem causar sofrimento, muitas vezes durante anos.
Contudo, as bactérias causadoras de doenças estão se tornando progressivamente mais resistentes aos antibióticos, o que impõe séria ameaça à nossa saúde, além de determinar um imenso impacto econômico em todo o mundo. O uso de antibióticos é algo complexo, que requer conhecimento, responsabilidade e compromisso profissional.
Resistência bacteriana aos antibióticos
As bactérias possuem dois tipos de resistência aos antibióticos: intrínseca e adquirida. O primeiro tipo é espécie-específico, existindo nas formas selvagens da bactéria. Já o segundo tipo – adquirido – resulta da exposição, intencional ou não, a antibióticos ou outras substâncias produzidas pelo homem.
Aí que vem o problema: desde o início da era antibiótica, as bactérias têm demonstrado enorme capacidade de desenvolverem resistência a esses fármacos, de forma mais ou menos rápida. Para agravar, a resistência a um fármaco ou a uma classe de antibióticos, muitas vezes determina resistência a outras classes, de forma cruzada, limitando sobremaneira as alternativas terapêuticas. O uso inapropriado e abusivo de antibióticos é o principal responsável por esses fenômeno [12].
Sistematização do uso de antibióticos – SMART – ATB
Recentemente, professores da Curem, o maior centro de treinamento de urgências e emergências médicas da América Latina, desenvolveram um passo-a-passo para o processo de decisão acerca da necessidade e para a prescrição de antibióticos, que visa contribuir para o uso racional dessas drogas. A ferramenta, batizada de SMART-ATB, é composta de 6 (seis) passos, e se aplica a diferentes cenários clínicos, desde o de uma infecção leve, tratada em ambulatório, até uma situação grave, como a de um paciente internado em Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Passo 1 – Gravidade
A primeira questão a ser respondida diz respeito à gravidade do paciente, o que determina a urgência com que os antibióticos deverão ser iniciados. Por exemplo, em se tratando de um paciente com infecção grave (suspeita de sepse) os antibióticos devem ser iniciados dentro de no máximo uma hora.
A gravidade do paciente é avaliada mediante dados clínicos e laboratoriais, com intuito de detectar sinais de disfunção orgânica ativa ou iminente. Escores de alerta, como o MEWS (do inglês, Modified Emergency Warning Score) e o quick SOFA (qSOFA) podem ser úteis em cenários específicos.
O escore SOFA (do inglês, Sequencial Organ Failure Assessment) é utilizado para avaliação funcional de seis sistemas orgânicos, e foi incorporado à definição de sepse em consenso publicado recentemente [11].
Passo 2: Infecção
O segundo passo seria avaliar se infecção representa uma provável explicação para o quadro clínico apresentado pelo/a paciente. Aqui deve-se considerar notadamente a avaliação clínica geral, atentando para sinais como febre, taquicardia, taquipneia e prostração.
A presença de sinais e sintomas localizatórios fazem suspeitar de focos específicos, como tosse com expectoração purulenta, dor torácica e dispneia, que faz pensar na hipótese de pneumonia.
Em relação ao laboratório, vale observar exames que aumentam ou reduzem a suspeita de infecção, como a contagem de leucócitos, neutrófilos (incluindo formas jovens dessas células), a contagem de eosinófilos (geralmente abaixo de 50 cls/µL nas infecções bacterianas agudas), dosagem da proteína C reativa (PCR) e da procalcitonina, quando esta encontra-se disponível.
Algumas situações são sabidamente associadas com maior risco de infecção, como neutropenia, comorbidades graves, uso de corticoides ou de imunossupressores, invasões vasculares, ventilação mecânica, dentre outros. Vale dizer que quanto mais grave a condição do paciente menor a margem de risco que se pode correr nos casos duvidosos entre infecção e diagnósticos alternativos. Ou seja, nesses casos, a melhor conduta inicial é prescrever antibióticos.
Passo 3: Etiologia
Uma vez infecção tenha sido considerada uma hipótese forte para o caso, deve-se passar à avaliação da etiologia – microrganismo – mais provável. Para tal, devemos levar em conta o localização do quadro infeccioso, já que para cada sítio há uma flora predominante. Por exemplo, nas infecções urinárias há amplo predomínio de enterobactérias, particularmente da Escherichia coli.
Deve ser considerada a presença de fatores de risco para bactérias com perfil de resistência mais complicado, como uso de antibióticos nos últimos 90 dias, internação recente e colonização conhecida por microrganismos multirresistentes. Há também fatores de risco para bactérias específicas, como Staphylococcus aureus (eg, hemodiálise), Pseudomonas aeruginosa (eg, doença pulmonar estrutural, neutropenia) e Candida (eg, cirurgia abdominal, nutrição parenteral).
Passo 4: Culturas
Na maior parte das vezes, sobretudo quando diante de infecções graves ou adquiridas em ambiente hospitalar, antes de se prescrever os antibióticos o médico deve solicitar pesquisa microbiológica, que envolve exame direto (eg, coloração de Gram) e culturas. Geralmente são solicitadas hemocultura, além de cultura de espécimes que sejam pertinentes, conforme a suspeição clínica (eg, urina, escarro, líquor).
Idealmente, os exames de pesquisa microbiológica devem ser coletados antes da primeira dose de antibióticos, ainda que isso não justifique atraso no início do tratamento nos pacientes graves, se por qualquer razão as culturas não puderem ser coletadas no tempo desejado. Atualmente, grande parte das instituições têm protocolos para pacientes com suspeita de sepse, que uma vez acionados, mobilizam todos os setores envolvidos nos cuidados dos pacientes, incluindo laboratório e farmácia, o que aumenta a chance de adesão às melhores práticas na condução desses casos.
Passo 5: Prescrição
A prescrição do(s) antibiótico(s) representa o passo seguinte nesse processo. Para tal, devem ser considerados aspectos relativos à farmacodinâmica e farmacocinética(PK/PD) desses fármacos, o que vai impactar nas definições de doses de ataque e manutenção, correções para função renal ou hepática, concentração esperada no sítio de interesse, tempo de infusão no caso de medicamentos injetáveis, dentre outros aspectos relevantes. Deve-se considerar ainda se a(s) medicação(ões) é permitida para gestantes e lactantes, além da presença de alergia (sobretudo se grave).
Passo 6: Reavaliação
Uma vez iniciados os antibióticos, deve-se proceder à reavaliação do paciente de forma periódica. Pacientes em uso desses fármacos devem ser acompanhados de perto, e reavaliados diariamente com relação à dose, via de administração, espectro de cobertura necessário, composição do esquema terapêutico e indicação de seguir com o tratamento. Deve-se cobrar resultados das culturas, considerando-se a possibilidade de redução do espectro ou até a suspensão das drogas, em caso de diagnóstico diferencial mais provável.
O termo descalonamento, uma tradução literal do inglês de-escaling representa ajustes realizados que visam reduzir o uso desnecessário ou abusivo de antibióticos. A progressão do tratamento para via oral é também desejável sempre que considerada segura, já que pode reduzir custos, invasões (eg, acesso venoso) e até contribuir para menor permanência hospitalar.
Por fim, nos últimos anos vem se acumulando evidências de que tratamentos mais curtos (em geral, de até 7 dias) são tão eficazes quanto as terapias antibióticas longas para a maior parte das condições infecciosas. A decisão de se suspender os antibióticos pode ainda ser guiada pela dosagem sequencial de biomarcadores, como PCR e procalcitonina, cuja redução forte durante o tratamento associa-se à boa resposta terapêutica.
Comentários finais
A SMART-ATB não visa substituir o conhecimento necessário para utilização apropriada e judiciosa de antibióticos. Contudo, acreditamos que o uso dessa ferramenta será de grande valia ao sistematizar o uso desses fármacos. Além disso, os 6 passos propostos na SMART-ATB têm o potencial de sensibilizar os profissionais médicos acerca das suas limitações, alertando para os pontos de maior fragilidade na sua formação, e aprimorando a sua capacidade crítica para a melhor utilização desses preciosos compostos.
Referências
1 – Leekha S, Terrell CL, Edson RS. General principles of antimicrobial therapy. Mayo Clin Proc. 2011;86(2):156-67.
2 – Harbarth S, Theuretzbacher U, Hackett J, consortium D-A. Antibiotic research and development: business as usual? J Antimicrob Chemother. 2015;70(6):1604-7.
3 – Zhao L. Genomics: The tale of our other genome. Nature. 2010;465(7300):879-80.
4 – Lynch SV, Pedersen O. The Human Intestinal Microbiome in Health and Disease. N Engl J Med. 2016;375(24):2369-79.
5 – Akrami K, Sweeney DA. The microbiome of the critically ill patient. Curr Opin Crit Care. 2018;24(1):49-54.
6 – Mandell DaBs. Principles and Practice of Infectious Diseases. 2015(Eighth Ed., vol.1).
7 – Barber M, Rozwadowska-Dowzenko M. Infection by penicillin-resistant staphylococci. Lancet. 1948;2(6530):641-4.
8 – Ashley DJ, Brindle MJ. Penicillin resistance in staphylococci isolated in a casualty department. J Clin Pathol. 1960;13:336-8.
9 – Knothe H, Shah P, Krcmery V, Antal M, Mitsuhashi S. Transferable resistance to cefotaxime, cefoxitin, cefamandole and cefuroxime in clinical isolates of Klebsiella pneumoniae and Serratia marcescens. Infection. 1983;11(6):315-7.
10 – Serisier DJ. Risks of population antimicrobial resistance associated with chronic macrolide use for inflammatory airway diseases. Lancet Respir Med. 2013;1(3):262-74.
11 – Rhodes A, Evans LE, Alhazzani W, Levy MM, Antonelli M, Ferrer R, et al. Surviving Sepsis Campaign: International Guidelines for Management of Sepsis and Septic Shock: 2016. Crit Care Med. 2017;45(3):486-552.
12 – O’Neil J. The Review on Antimicrobial Resistance. Tackling Drug-Resistant Infections Globally: Final Report and Recommendations. Reino Unido. 2016.
13 – Timsit JF, Bassetti M, Cremer O, Daikos G, de Waele J, Kallil A, et al. Rationalizing antimicrobial therapy in the ICU: a narrative review. Intensive Care Med. 2019;45(2):172-89.
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