Quando uma pessoa diz que está “enferrujando” com a idade talvez ela não esteja usando apenas uma força de expressão. O simples ato de respirar, dizem os especialistas, tende a provocar reações de oxidação no organismo, porque o próprio oxigênio é uma fonte potencial de formação dos chamados radicais livres em sistemas biológicos. Isso acontece devido às propriedades químicas do oxigênio que todos respiram.
De radicais livres muito já se ouviu falar, desde a década passada, quando começaram a ser apontados como os grandes responsáveis pela aceleração do envelhecimento e pelo desenvolvimento de doenças como o câncer. Mas não é tão simples assim.
Nem sempre os radicais livres fazem papel de vilões e podem até preencher funções fisiológicas importantes do organismo, como o combate a microrganismos invasores e o controle da pressão sanguínea. É sob esse aspecto que a pesquisadora Ohara Augusto, professora titular do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), vem desenvolvendo estudos, há cerca de 20 anos, sobre as oxidações biológicas.
Em 1996, ela deu início ao projeto temático Espécies Reativas em Oxigênio, Nitrogênio e Metais de Transição: Interações e Relevância em Processos Fisiológicos e Patológicos, que objetiva a compreensão de como os radicais livres são formados in vivo e como exercem seus efeitos, sejam os fisiológicos (bons) ou os deletérios.
Os radicais livres são espécies (um átomo, uma molécula, um íon) que contêm elétron, desemparelhados, em contraste com a grande maioria das moléculas que constituem o mundo físico e biológico (organismos vivos). Por isso, a maiores deles é reativa e sobrevive pouco tempo no organismo. Em compensação, os radicais derivados de oxigênio e de nitrogênio estão em constante formação dentro do corpo humano.
Leishmaniose
Transcorridos dois anos da pesquisa, a professora já chegou a conclusões relevantes, que ajudaram a compreender a reatividade química e biológica do óxido nítrico (NO), o radical livre mais estudado atualmente. “Uma das contribuições mais importantes do projeto foi sobre o papel do óxido nítrico na cura da leishmaniose, uma parasitose de alta incidência em nosso país”, adianta Ohara Augusto. No Brasil, a cada ano são registrados 20 mil novos casos; no mundo, 1,5 milhão de novos casos.
Segundo a pesquisadora, acreditava-se, no meio científico, que a síntese de óxido nítrico era suficiente para combater essa infecção. “Os nossos resultados, entretanto, mostraram que camundongos bastante infectados sintetizam óxido nítrico, mas são incapazes de eliminar os parasitos e, pior ainda, são acometidos de infecção secundária, com bactérias nas lesões cutâneas.” Ela adverte, entretanto, que ainda é preciso descobrir se “a síntese de NO é causa ou conseqüência da infecção secundária, o que poderá fornecer estratégias fundamentais para o tratamento da leishmaniose cutânea”.
Para chegar a essa conclusão, a equipe de pesquisadores realizou uma demonstração direta do aumento da síntese de NO. Eles mediram os níveis de nitrosil hemoglobina no sangue e de nitrosil proteínas ferro enxofre na pata dos camundongos infectados com Leishmania amazonensis, por meio de ressonância paramagnética eletrônica (EPR). Considera-se essa medida direta porque é o próprio NO que se liga ao ferro dessas proteínas. A primeira medição foi feita em 1996 e, depois, em estudos mais completos realizados em fevereiro deste ano, graças a um equipamento sofisticado chamado espectrômetro de ressonância paramagnética eletrônica, único instrumento capaz de detectar diretamente radicais livres em organismos.
A pesquisadora esclarece que estudos paralelos de outros autores mediram o óxido nítrico indiretamente no plasma ou na urina de camundongos infectados e chegaram a conclusões semelhantes às do projeto temático: os níveis de NO aumentam com a evolução da leishmaniose cutânea e visceral. Entretanto, o trabalho publicado pela equipe da pesquisadora em fevereiro último foi o único a demonstrar a presença de infecção bacteriana nas lesões e a levantar uma possível associação entre o aumento da síntese de NO e infecções secundárias.
O radical hidroxila
“Outra contribuição importante do nosso trabalho foi fornecer evidências experimentais para o mecanismo pelo qual o óxido nítrico, um radical pouco reativo, pode produzir o radical hidroxila, que é extremamente reativo”, salienta Ohara Augusto. Essas evidências resultaram dos estudos empregando EPR (método do captador de spin), publicados inicialmente em 1994, quando a maioria dos pesquisadores ainda duvidava dessa formação, e confirmadas em janeiro deste ano, momento em que os especialistas começaram a admiti-la.
O mecanismo de produção do radical hidroxila envolve a decomposição do peroxinitrito (produto da reação do NO com o anion superóxido). Sua formação, segundo Ohara, poderia explicar alguns dos efeitos patológicos associados a uma superprodução de óxido nítrico, que parece ocorrer em inflamações e infecções crônicas.
Exemplo: no caso da leishmaniose cutânea, que os pesquisadores estão estudando como modelo para compreender os efeitos fisiológicos de NO e seus derivados oxidantes in vivo, a formação de peroxinitrito – demonstrada por imunoquímica nas lesões cutâneas de camundongos infectados – poderia contribuir para o estado geral debilitado dos animais infectados, que morrem prematuramente.
Um outro resultado considerado importante pela equipe foram as evidências apresentadas durante a pesquisa de que produtos de adição de radicais livres ao RNA podem promover a proliferação de algumas células em cultura. Esses estudos, que ainda precisam ser aprofundados, abrem novas perspectivas para a compreensão dos papéis de radicais livres nos processos de desenvolvimento de câncer.
“De fato, os radicais livres, além de lesar o DNA, poderiam promover o crescimento anômalo das células, por meio de seus produtos de reação com RNA”, conclui a pesquisadora.
O projeto temático coordenado por Ohara Augusto recebeu apoio da FAPESP no valor de US$ 228 mil e deve ser concluído em 1999. Conta com a colaboração das professoras Ana Maria da Costa Ferreira, do Departamento de Química da USP, e Selma Giorgio, do Departamento de Parasitologia da Unicamp, além da participação de estudantes da disciplina. As conclusões do trabalho resultaram em cerca de treze publicações em jornais e revistas científicas especializadas, além de ter inspirado uma dissertação de mestrado e três teses de doutorado.
Perfil
A pesquisadora Ohara Augusto, 50 anos, é química formada pela Universidade de São Paulo (USP) e, desde 1993, é professora titular do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química. Há 20 anos pesquisa o tema oxidações biológicas, que inspirou sua tese de doutorado, defendida na própria universidade, e seu pós-doutorado, realizado na Universidade da Califórnia (Berkeley e São Francisco), nos Estados Unidos.
Fonte:
Revista FAPESP