Na quinta-feira (16/9), o Ministério da Saúde publicou um documento que está causando bastante polêmica: a portaria voltou atrás na decisão de vacinar todos os adolescentes contra a covid-19 a partir de 15 de setembro.
A proposta agora é oferecer as doses apenas a indivíduos de 12 a 17 anos que tenham deficiência permanente, comorbidades ou estejam privados de liberdade.
O único imunizante aprovado para essa faixa etária no Brasil é a Comirnaty, de Pfizer e BioNTech.
Na nova diretriz, que é assinada pela Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19 do Ministério da Saúde, são apresentados alguns argumentos para não indicar a vacinação de adolescentes.
Além de afirmar que a doença costuma ser benigna e sem maiores complicações nessa faixa etária, os representantes do Governo Federal também chamaram a atenção para um possível efeito colateral da vacina da Pfizer: a miocardite, um tipo de inflamação no músculo cardíaco.
A decisão do ministério já teve efeitos práticos: alguns Estados, como Amapá, Minas Gerais e Paraná, suspenderam a vacinação de adolescentes. Outros, como São Paulo, Bahia e Espírito Santo, ignoraram a nova recomendação.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) soltou um comunicado dizendo que não há motivos para mudar qualquer recomendação de uso da vacina da Pfizer nos adolescentes.
Até o momento, pelo menos três associações que reúnem médicos especialistas na área também divulgaram notas e posicionamentos criticando a nova portaria do Ministério da Saúde: a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai) reforçaram que a vacina da Pfizer foi aprovada para uso no país com base em dados que comprovam sua segurança e eficácia para adolescentes.
Mas o que motivou a mudança de postura do Ministério da Saúde? E o que efetivamente se sabe sobre a aplicação dos imunizantes que protegem contra a covid-19 nos mais jovens?
As evidências para a aprovação
Como mencionamos lá no início da reportagem, por ora, a única vacina autorizada no Brasil para indivíduos de 12 a 17 anos é a Comirnaty, desenvolvida pelas farmacêuticas Pfizer e BioNTech.
A aprovação, concedida no dia 12 de junho, teve como base um estudo que reuniu 1.972 adolescentes, em que foi detectada uma taxa de eficácia de 100%.
Vale adiantar que, nesta mesma pesquisa, já foram observados casos de miocardite após a vacinação.
Segundo os cálculos (os mesmos usados pelo Ministério da Saúde), foram 16 indivíduos acometidos a cada 1 milhão de vacinados.
No trabalho, a maioria das inflamações cardíacas foi leve, e os acometidos se recuperaram após um tempo curto de tratamento e repouso. Também não foi observado nenhum infarto decorrente dessa complicação.
Com o sinal verde da Anvisa, várias cidades brasileiras anunciaram novos calendários e passaram a oferecer o imunizante da Pfizer para a faixa etária que vai dos 12 aos 17 anos desde o final de agosto.
E, embora os adolescentes não estejam entre os mais afetados pela infecção com o coronavírus, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil entendem que levar essa proteção a eles é um passo natural, ainda que seja mais urgente e prioritário garantir a segunda dose aos adultos e dar uma terceira nos grupos vulneráveis.
O pediatra Renato Kfouri, diretor da SBIm, destaca que, mesmo entre pessoas com menos de 18 anos, é preciso criar critérios e dar prioridade a alguns perfis.
“Os jovens com fatores de risco para covid-19, como doenças cardíacas, diabetes e as gestantes já deveriam, inclusive, estar vacinados há algum tempo”, diz.
A nova portaria do Ministério da Saúde diz, inclusive, que a vacinação contra a covid-19 só deve contemplar justamente os adolescentes com comorbidades ou aqueles que tenham deficiência permanente ou estejam privados de liberdade.
Na sequência, “o caminho natural”, avalia Kfouri, seria oferecer as doses aos demais adolescentes, o que deve ser restringido nas próximas semanas, se a decisão do ministério for mantida.
Como surgem os efeitos colaterais?
De acordo com o site do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, os sintomas mais comuns que aparecem nos adolescentes após a vacina são dor e vermelhidão no braço, cansaço, dor de cabeça, calafrios, febre e náuseas.
Nem todas as pessoas sentem os incômodos — e, mesmo naquelas que apresentam esses efeitos colaterais, o quadro costuma ser leve e dura poucos dias, de acordo com a entidade americana.
Caso essas manifestações persistam, vale consultar um médico para uma avaliação personalizada e aprofundada.
Mas o fato que tem preocupado muitos pais, ainda mais depois da portaria do Ministério da Saúde, é o risco de miocardite ou pericardite, que são tipos de inflamação que acometem o coração.
Em alguns lugares do mundo, foi observado um aumento na frequência dessa condição entre os mais jovens após o início da vacinação.
“Mas é importante ressaltar mais uma vez que esses casos de inflamação são raríssimos e, a maioria dos casos foi leve e se resolvem rapidamente”, esclarece a médica Denise Garrett, vice-presidente do Instituto Sabin de Vacinas, organização que trabalha com políticas públicas de imunização em vários países do mundo.
Segundo dados publicados no periódico científico Nature, foram detectados 67 casos de miocardite a cada milhão de meninos de 12 a 17 anos vacinados com a segunda dose. Em meninas, essa taxa ficou em 9 casos por milhão de imunizadas.
No documento divulgado pelo Ministério da Saúde, o cálculo fala numa frequência da complicação ainda menor: de acordo com as estimativas que foram levadas em conta pelos técnicos do Governo Federal, seriam 16 casos de miocardite a cada 1 milhão de indivíduos imunizados com as duas doses.
As autoridades ainda estão estudando se esse problema cardíaco é realmente causado pelos imunizantes ou se uma coisa não tem nada a ver com a outra, diz Garrett.
Ainda de acordo com a especialista, também não se sabe porque homens são mais afetados do que as mulheres.
Mesmo diante dessas investigações, os especialistas garantem que não há motivos para pânico ou para não aplicar as doses nos mais jovens.
Como destaca o próprio site do CDC americano, as vacinas são seguras e eficazes nessa faixa etária e “seus potenciais benefícios superam, de longe, qualquer efeito colateral”.
Em outras palavras, o risco de ter covid-19 e sofrer com suas complicações é bem maior do que a probabilidade de desenvolver uma inflamação cardíaca, mesmo entre os adolescentes.
E ainda há outro detalhe a ser considerado nessa história: a própria infecção pelo coronavírus também aumenta a probabilidade de ter uma miocardite.
De acordo com um trabalho feito pela Universidade Case Western Reserve, nos Estados Unidos, o risco de jovens sofrerem com uma inflamação cardíaca pela covid-19 é seis vezes maior do que pela vacina.
Vale destacar que essa pesquisa ainda está em pré-print e não foi avaliada por outros especialistas independentes.
O que acontece no Brasil?
Um segundo fator que pode ter influenciado na decisão do Ministério da Saúde foi a divulgação de um caso de uma adolescente de 16 anos que mora em São Bernardo do Campo, em São Paulo, e morreu após ser vacinada.
Mas a Anvisa pede muita cautela com essa notícia: não foi estabelecida uma relação causal entre as duas coisas. Em outras palavras, não é possível dizer que a morte foi provocada pelo imunizante e as autoridades estão investigando o que aconteceu efetivamente.
“A Agência já iniciou a avaliação e a comunicação com outras autoridades públicas e adotará todas as ações necessárias para a rápida conclusão da investigação. Entretanto, com os dados disponíveis até o momento, não existem evidências que subsidiem ou demandem alterações nas condições aprovadas para a vacina”, informa a Anvisa, em seu site oficial.
Vale destacar que esse trabalho de investigação é rotineiro e faz parte das atribuições das secretarias municipais e estaduais, além da própria Anvisa: se uma pessoa apresenta uma reação adversa após a vacinação, como a tal da miocardite, por exemplo, o problema precisa ser notificado e avaliado pelos especialistas.
“A Agência ressalta que todas as vacinas autorizadas e distribuídas no Brasil estão sendo monitoradas continuamente pela vigilância diária das notificações de suspeitas de eventos adversos”, continua a nota.
“Os dados gerados pelo avanço do processo vacinal em larga escala são cuidadosamente analisados em conjunto com outras autoridades de saúde. Até o momento, os achados apontam para a manutenção da relação benefício versus risco para todas as vacinas, ou seja, os benefícios da vacinação excedem significativamente os seus potenciais riscos”, finalizam os representantes da Anvisa.
O que diz o Governo Federal
Logo após a publicação da portaria, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, deu algumas declarações sobre a questão.
De acordo com seu relato, foram vacinados 3,5 milhões de adolescentes e identificados cerca de 1,5 mil eventos adversos nesse público. Todos os casos foram considerados leves.
Queiroga também criticou as políticas de algumas cidades, que já haviam iniciado a imunização dos mais jovens em agosto, quando a orientação anterior do ministério era que esse público só começasse a receber as doses a partir de 15 de setembro.
“O Ministério da Saúde pode rever a sua posição, desde que haja evidências científicas sólidas em relação à vacinação em adolescentes sem comorbidades. Por enquanto, por uma questão de cautela, nós temos eventos adversos a serem investigados”, afirmou o ministro, durante uma coletiva de imprensa na quinta-feira (16/9).
O que dizem as entidades
Após a mudança de planos do Ministério da Saúde, diversas entidades que reúnem especialistas publicaram pareceres sobre o assunto.
A Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) divulgou um comunicado em que discorda da nova política do Governo Federal e informa que “as justificativas apresentadas não são claras ou não têm sustentação”.
Um argumento do Ministério da Saúde que a SBIm rebate é o suposto fato de a Organização Mundial da Saúde (OMS) não recomendar a imunização de crianças e adolescentes contra a covid-19.
“A OMS não é contrária à vacinação de adolescentes ‘com ou sem comorbidades’. De acordo com o Grupo Consultivo Estratégico de Especialistas em Imunização (SAGE, na sigla em inglês) da entidade, as vacinas de mRNA — caso da Pfizer/BionTech — são adequadas para o uso em pessoas acima de 12 anos”, aponta a SBIm.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) também se manifestou e disse que “decisões unilaterais não contribuem para a construção de um programa de imunização de sucesso, sendo a confiança um dos principais pilares das ações de vacinação”.
Já a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai) chamou a atenção para o fato de a vacina da Pfizer ter aprovação da Anvisa para ser usada em adolescentes:
“O registro sanitário de um produto imunobiológico é a demonstração documentada de sua segurança, eficácia e qualidade. Portanto, antes da concessão do registro sanitário, é realizada avaliação criteriosa de um conjunto de documentos relacionados a estudos clínicos e de estabilidade, processos e procedimentos de fabricação e controle de qualidade, modelo de bula e rotulagem, além da verificação do cumprimento das boas práticas de fabricação”, afirma a entidade.
Por fim, os conselhos municipais e estaduais de secretários da Saúde, o Conasems e o Conass, respectivamente, declararam que a decisão foi tomada “sem respaldo científico”.
“Enquanto executores desta importante política pública, Conass e Conasems, baseados nos atuais conhecimentos científicos, defendem a continuidade da vacinação para a devida proteção da população jovem, sem desconsiderar a necessidade de priorizar neste momento dentre os adolescentes, aqueles com comorbidade, deficiência permanente e em situação de vulnerabilidade”, defendem as entidades.
O que diz a Pfizer
A responsável pela vacina também se manifestou sobre a questão.
Em nota divulgada à imprensa, a farmacêutica diz estar “ciente de relatos raros de miocardite e pericardite, além de outros possíveis eventos adversos, após a aplicação da vacina” e que “leva o acompanhamento e monitoramento desses casos muito a sério”.
A empresa também afirma estar investigando o caso da adolescente que morreu após ser vacinada.
“Especificamente sobre o caso de óbito em São Bernardo do Campo, a companhia está acompanhando, mas, até o momento, não foi estabelecida uma relação causal entre o ocorrido e o imunizante da Pfizer”.
A farmacêutica conclui dizendo que “a definição da utilização e da disponibilização da vacina no Brasil é feita com base em critérios de recomendação do Programa Nacional de Imunizações (PNI)” e que o produto está autorizado “pelas agências regulatórias de saúde dos Estados Unidos e da União Europeia, além de países como Reino Unido, canadá, Chile, Uruguai, Israel, Dubai, Hong Kong, Filipinas, Cingapura e Japão”.
Pontos a favor da vacinação dos jovens
Para Garrett, existem pelo menos quatro motivos principais que justificam a imunização da turma de 12 a 17 anos.
“Em primeiro lugar, por mais que a gente saiba que as crianças com covid-19 evoluam muito melhor e se recuperem, temos algumas que ficam muito doentes e acabam hospitalizadas”, pontua a especialista, que destaca o aumento de casos e internações pela doença entre os mais jovens nos últimos meses.
Segundo ponto: a história desse coronavírus ainda está sendo escrita e não se sabe tudo sobre ele e as possíveis repercussões futuras à saúde.
Os quadros de covid longa, por exemplo, ainda são um grande mistério e a medicina não tem ideia de quanto tempo eles podem durar ou como vão evoluir pelos próximos anos.
Terceiro, por mais que crianças e adolescentes tenham quadros menos severos de covid-19, eles podem transmitir o vírus para contatos próximos.
A vacinação, portanto, ajudaria a bloquear um pouco essa transmissão comunitária do coronavírus.
“Por fim, uma última razão em prol do argumento de vacinar os mais jovens é manter as escolas abertas. Nós precisamos fazer de tudo para que esse ambiente seja seguro e a educação seja retomada”, completa a médica.
Pontos contra
Apesar de a imunização das idades mais tenras fazer sentido e parecer um caminho natural, os especialistas também entendem que há alguns fatores que desencorajam esse avanço no momento atual (que não tem nada a ver com os eventos adversos, diga-se).
O primeiro deles é uma eventual falta de estoque para cobrir outras demandas mais urgentes, como a garantia da segunda dose de toda a população adulta e a terceira dose nos grupos mais vulneráveis, como idosos e imunossuprimidos (portadores de HIV, recém-transplantados, pacientes em tratamento de câncer, entre outros).
“Não há dúvida de que a nossa meta com a vacinação agora é reduzir os casos graves, as hospitalizações e as mortes. A proteção de adolescentes deve acontecer se tivermos vacinas suficientes para cumprir os demais objetivos”, entende Kfouri.
Garrett concorda e reforça que a palavra de ordem é priorização. “Como não temos um quantitativo suficiente para cobrir toda a população, precisamos pensar em estratégias capazes de resguardar aqueles que são mais vulneráveis à covid-19”, diz.
O segundo argumento que pesa contra a vacinação de adolescentes tem um componente moral e ético: será que é justo os países mais ricos vacinarem os cidadãos mais jovens enquanto profissionais da saúde e idosos das nações mais pobres sequer receberam suas doses?
Em maio, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, chegou a dizer que os lugares mais desenvolvidos estão protegendo suas crianças “às custas dos grupos de alto risco de outros locais”.
Nesse caso, assim como aconteceu com os apelos contrários à aplicação de uma terceira dose e à adoção dos passaportes da imunidade, o posicionamento da OMS e de outras instituições internacionais pouco influenciou a decisão dos países mais ricos sobre a condução das campanhas nacionais de vacinação contra covid-19.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58429413