Como um país em desenvolvimento com uma extensão territorial que se estende por grande parte do continente sul-americano e com uma população de cerca de 212 milhões, o Brasil enfrenta muitos desafios relacionados à desigualdade na assistência à saúde e estratégias preventivas, especialmente para doenças não transmissíveis. Esta análise, publicada pelo The Lancet Diabetes & Endocrinology, discute como nos últimos 50 anos o Brasil passou por uma transição epidemiológica caracterizada pela redução das doenças infecciosas e aumento das doenças crônicas.
Mudanças nos padrões socioeconômicos e culturais da população, como rápida urbanização, migração interna e desenvolvimento econômico desigual, resultaram em mudanças nos hábitos de vida, incluindo padrões alimentares cada vez mais prejudiciais à saúde e redução da atividade física.
Em 2019, a Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e de Proteção para Doenças Crônicas (Vigitel, pesquisa telefônica anual feita pelo Ministério da Saúde do Brasil que visa fornecer um amplo panorama nacional das mudanças nos hábitos alimentares e de saúde e de diversas doenças não transmissíveis, tais como hipertensão e diabetes) mostrou que 44,8% da população geral relatou um nível insuficiente de atividade física (ou seja, menos de 150 minutos por semana de atividade de intensidade moderada ou 75 minutos por semana de atividade de alta intensidade).
A atividade física insuficiente foi mais comum entre as mulheres (52,2%) do que entre os homens (36,1%) e tendeu a ser mais prevalente com o aumento da idade e menor nível de escolaridade em ambos os sexos.
Apenas 34,3% da população relatou consumo regular (≥5 dias por semana) de frutas e verduras (27,9% para homens e 39,8% para mulheres); o valor equivalente para o consumo regular de alimentos ultraprocessados foi de 18,2% e foi maior entre os homens (21,8%) do que entre as mulheres (15,1%).
Os dados da pesquisa Vigitel também revelaram que a prevalência de obesidade (IMC ≥30 kg/m²) aumentou de 13,9% em 2009 para 19,8% em 2019. Para pessoas com idade entre 45-64 anos, a prevalência de obesidade foi de 20,9%, enquanto nas pessoas de 18 a 24 anos era de 8,7%. Esses achados foram consistentes com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e sugerem que os fatores de estilo de vida parecem, pelo menos em parte, responsáveis pela tendência crescente de sobrepeso e obesidade em todas as faixas etárias no Brasil.
Dados sobre a prevalência de síndrome metabólica, um agrupamento de anormalidades metabólicas e cardiovasculares, também estão disponíveis para algumas cidades brasileiras. Por exemplo, um estudo de base populacional realizado entre 2009 e 2014 com 818 adultos com 20 anos ou mais de Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, no sul do Brasil, mostrou que a prevalência geral de síndrome metabólica foi de 30,9% (IC 95% 27,2-34,7). Esses valores foram maiores do que aqueles encontrados nos primeiros anos do século 21 (19-25%). Após ajuste para etnia, nível educacional, renda, estado civil e tabagismo, adultos que deixaram de ser ativos durante os momentos de lazer entre 2009 e 2014 tiveram uma probabilidade cerca de duas vezes maior de desenvolver síndrome metabólica (odds ratio 2,08, IC 95% 1,30–3,33), com uma probabilidade ligeiramente maior vista naqueles que permaneceram fisicamente inativos (2,24, 1,38–3,65).
A crescente prevalência de diabetes tipo 2 no Brasil também é preocupante. Dados da Vigitel mostraram um aumento de 24% na prevalência de diabetes tipo 2 autorreferida entre adultos brasileiros de 2006 a 2019 (de 5,5% para 7,4%). Os resultados do ELSA-Brasil, um estudo de coorte de 15.105 funcionários públicos com idades entre 35-74 anos de várias regiões, mostrou que 20% dos participantes tinham diabetes tipo 2 no início do estudo (2008-10). A carga de mortalidade do diabetes no Brasil também merece atenção: em uma análise nacional, houve 65.581 mortes atribuíveis ao diabetes conhecido entre adultos de 35-80 anos em 2013, representando 9,1% das mortes nesta faixa etária (se o diabetes não diagnosticado fosse levado em consideração, esse valor aumentaria para 14,3%).[6] Por outro lado, a proporção de todas as mortes atribuídas ao diabetes, com base em atestados de óbito, de 5,3% é provavelmente uma subestimativa.
No estudo ELSA-Brasil com adultos de 35-74 anos, entre mulheres e homens, respectivamente, 23,2% e 40,7% tinham hipertrigliceridemia, 20,7% e 14,7% tinham colesterol HDL baixo e 57,6% e 58,8% tinham colesterol LDL alto. Uma alta prevalência de dislipidemia também foi aparente no estudo ERICA com 38.069 adolescentes com idades entre 12-17 anos. As alterações lipídicas mais prevalentes na população do estudo ERICA foram colesterol HDL baixo (46,8%, IC 95% 44,8–48,9), hipercolesterolemia (20,1%, 19,0–21,3) e hipertrigliceridemia (7,8%, 7,1–8,6). A prevalência de hipercolesterolemia familiar, uma doença genética associada à aterosclerose precoce, também foi avaliada no estudo ELSA-Brasil, mostrando uma carga geral de um em 263 indivíduos; a hipercolesterolemia familiar foi mais comum em grupos étnicos negros (um em 156) e pardos (etnia mista; um em 204) do que em brancos (um em 417).
A pandemia de COVID-19, que até o momento resultou na morte de mais de 157.000 pessoas no Brasil, exacerbou as desigualdades de saúde existentes. Tanto a obesidade quanto o diabetes são fatores de risco reconhecidos para desfechos clínicos graves de COVID-19 e são mais prevalentes em populações socialmente desfavorecidas, como grupos étnicos pardo e negro. No Brasil, esses grupos étnicos foram desproporcionalmente afetados pela COVID-19 e tinham maior probabilidade de morrer.[10] A escala do impacto negativo da pandemia na saúde dos brasileiros, especialmente na saúde de seus cidadãos mais carentes, ainda não é conhecida, mas espera-se que seja muito substancial.
Em 2012, o Ministério da Saúde brasileiro estabeleceu um painel de cientistas, médicos e economistas da saúde para produzir diretrizes para o tratamento de doenças crônicas, incluindo obesidade, diabetes e comorbidades associadas. Em 2020, esse painel publicou um novo conjunto de diretrizes com base nas mudanças no estilo de vida, incluindo protocolos para atividade física e orientação dietética, farmacoterapia e cirurgia bariátrica ou metabólica. O Brasil possui o segundo maior volume de cirurgias bariátricas ou metabólicas do mundo, depois dos EUA, com 68.530 procedimentos realizados em 2019.
Cerca de 47 milhões de brasileiros são atendidos pelo sistema privado de saúde, a maioria com acesso a medicamentos de ponta. No entanto, a grande maioria da população ainda não é atendida pelo sistema público de saúde. As seguradoras privadas de saúde reembolsam cerca de 90% das cirurgias bariátricas ou metabólicas, embora esses procedimentos não estejam amplamente disponíveis para as pessoas atendidas pelo sistema público de saúde. As novas diretrizes para 2020 incluem recomendações que devem atuar como motivadores para aumentar o número de procedimentos cirúrgicos bariátricos no sistema público de saúde. No entanto, essas orientações foram emitidas no final de fevereiro, após o qual todos os principais hospitais públicos tiveram seus leitos e até mesmo salas de cirurgia transformadas em unidades de terapia intensiva para tratar pacientes com COVID-19. Assim, nenhum procedimento de cirurgia bariátrica foi realizado de março até o final de agosto de 2020, embora as operações agora estejam sendo retomadas lentamente.
O Brasil está enfrentando as consequências metabólicas de uma rápida transição epidemiológica. Lidar com o fardo da saúde metabólica precária requer o envolvimento de organizações de saúde e da sociedade civil, bem como esforços robustos do governo. Há uma necessidade urgente de implementar programas educacionais e melhorar as instalações públicas dedicadas para ajudar os brasileiros a ter um estilo de vida mais saudável e reduzir o fardo da obesidade e suas comorbidades.
Original: https://www.news.med.br/p/saude/1382938/saude+metabolica+no+brasil+dados+mostram+baixos+niveis+de+atividade+fisica+maus+habitos+alimentares+e+aumento+das+doencas+cronicas+nos+ultimos+anos.htm