Fenômeno de bilheteria, Coringa tem atraído a cada dia mais espectadores aos cinemas ao redor do mundo. Em apenas duas semanas, o drama psicológico que remonta às origens do vilão mais icônico do “universo Batman” alcançou a marca de 6,5 milhões de ingressos vendidos no Brasil.
Longe de ser um filme típico de super-herói, o longa dirigido por Todd Phillips (de Se beber, não case) coloca em evidência o tema da saúde mental. O ator Joaquin Phoenix, que interpreta o protagonista, relatou em entrevistas que a construção do personagem foi uma experiência “perturbadora”. O esforço, inclusive, envolveu a perda de 27 quilos.
Considerada provocadora, a obra tem suscitado diversas interpretações quanto à sanidade de Arthur Fleck, o comediante fracassado que se transmuta em Coringa. Mas é justamente aqui que começam as diferenças entre ficção e realidade. Enquanto no filme a doença mental sugere um gatilho para o comportamento violento, fora das telas a ciência constata que pacientes psiquiátricos, em geral, não manifestam tendência a atitudes violentas. A exceção fica por conta de casos em que esse comportamento é induzido pelo abuso de substâncias químicas como álcool e drogas.
A constatação é do psiquiatra Antônio Egídio Nardi, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “O nível de transtorno psicológico que gera a deterioração do indivíduo, como o emagrecimento exagerado e os vícios [o personagem fuma durante todo o filme] é raro, mas possível. Já o volume de violência é incomum para qualquer transtorno psiquiátrico”, salienta ele, que é membro da Academia Nacional de Medicina (ANM).
Logo, a ideia de que a onda de violência e caos provocada por Coringa se justifica pelos distúrbios mentais de Fleck não tem embasamento científico. “Eu diria que o personagem apresenta sinais de personalidade esquizoide e tem depressão”, sugere Nardi. “Ainda assim, é preciso deixar claro que o filme não é engajado em vencer o preconceito contra as doenças mentais e tampouco é perigoso. É o que é: apenas uma ficção e não há um diagnóstico na psiquiatria para o personagem.”
Nardi também é organizador da Atualização em Psiquiatria desenvolvida pela ABP. Se você deseja se aprimorar no atendimento às doenças mentais, vale conhecer essa atualização.
Condições ambientais como fator de risco
Coringa é ambientado nos anos 1980 e destaca a fictícia cidade de Gotham abalada pela desigualdade social. Dependente de remédios para controlar uma doença neurológica que o faz rir incessantemente em situações de nervosismo (um possível quadro de epilepsia gelástica), o personagem recorre ao serviço de saúde pública, onde é atendido por uma assistente social.
O atendimento, entretanto, é suspenso pelo governo e Fleck fica desassistido. Sem condições de comprar seus remédios, ele passa a fantasiar relações e situações, tendo o isolamento como uma de suas características mais marcantes.
Segundo Nardi, a cobertura de serviços de saúde mental no Brasil não é ideal, mas está longe do que é retratado no filme. “Por aqui, as universidades públicas têm sido protagonistas do acolhimento a pacientes psiquiátricos, com assistência digna e de qualidade”, afirma.
Atualmente, o Brasil vive um período de importantes debates sobre saúde mental. Há anos, aliás, a reforma psiquiátrica preconiza a humanização e a restauração da cidadania do paciente com transtorno mental.
No longa, a exclusão do personagem fica agravada pelo bullying praticado por colegas de trabalho, pela falta de condições financeiras por sua relação doentia com a mãe, marcada pela ausência de afeto. Arthur Fleck, o homem por trás de Coringa, carrega traumas de violência doméstica sofrida na infância – tanto pela mãe quanto pelo padrasto.
“Não existe uma regra, mas traumas de infância que envolvem violência realmente predispõem transtornos mentais na vida adulta. Os mais comuns são transtorno bipolar, depressão e esquizofrenia”, comenta Nardi.
Ao longo do filme, Fleck sugere o suicídio em diferentes momentos. Outra cena que indica possível presença de transtorno mental é quando ele, cansado de sentir-se invisível e de negar a própria existência, assassina três jovens que o humilhavam no metrô.
A partir de então, o palhaço passa a ser notícia na cidade, ainda que sua identidade seja desconhecida. A autoafirmação, cabe lembrar, é condição inerente ao ser humano, que desde pequeno procura se destacar e ocupar espaços na malha social. No longa, o personagem consegue se colocar em evidência por meio do caos provocado por ele. Isso acontece porque a população começa a nutrir empatia pelo “justiceiro” que enfrenta a ordem e os ricos.
“O mais curioso é que a profissão de palhaço é afetiva, gera interesse social, e é exatamente isso que falta nele. As pessoas não riem do Coringa, riem dele, de sua inadequação como um palhaço. Talvez, se fosse outra profissão, não nos chocasse tanto”, complementa Nardi.
TEXTO RETIRADO DO SITE: https://www.secad.com.br/blog/saude-mental/coringa-psiquiatria/