Seja no pronto atendimento ou durante o convívio social, você já se deparou com uma intoxicação aguda por álcool. E aí, você sabe como o etanol age no nosso organismo? Qual a sua importância para a saúde pública? Conhece o manejo dessa situação? Está apto a identificar padrões de consumo abusivos?
Mesmo sendo um assunto tão comum na prática clínica, às vezes bate aquela insegurança, não é mesmo? Pensando nisso, logo abaixo, vamos elucidar pontos importantes da intoxicação alcoólica.
Epidemiologia do consumo
O álcool é a droga mais consumida no mundo, responsável por 5,9% de todas as mortes. Seu uso nocivo acarreta em complicações tanto no organismo do indivíduo, como a cirrose, aumento do risco cardiovascular, demência, quanto em danos sociais como os acidentes de trânsito, aumento da violência familiar e abteísmo laboral. Sendo assim, o uso abusivo de álcool é considerado um problema de saúde pública.
No Brasil, 62% dos adultos ingerem bebidas alcoólicas, sendo que 11% dos homens e 2% das mulheres o fazem diariamente. Apesar de restrita a maiores de 18 anos, não é incomum o uso por menores de idade. O mais preocupante é que o perfil dos usuários é cada vez mais jovem – a média de idade para o início do consumo é de 12,5 anos, e o padrão de consumo é configurado como em binge (grandes quantidades em um curto espaço de tempo).
Metabolização do álcool
A metabolização do etanol ocorre por uma série de alterações metabólicas de reações oxidativas, tornando-a um tanto complexa e pouco palpável a nível de prática clínica. De maneira geral, é importante elucidar sua forma de absorção, o papel do fígado na metabolização e a ação do álcool no SNC.
Quando ingerido, o álcool é absorvido predominantemente no estômago e intestino delgado (80-90%). Por se tratar de uma substância hidrossólúvel, é facilmente absorvido na mucosa do estômago. Sua absorção pode ser potencializada na presença de alguns fatores: ausência de alimento no trato gastrointestinal, esvaziamento gástrico acelerado (pelo uso de alguns medicamentos), ingestão de cafeína e ingestão de bebida gaseificada. Nesses casos, a sua chegada aos órgãos como fígado e cérebro é acelerada, aumentando o dano ao tecido hepático e produzindo embriaguez mais rapidamente (SILVA 1997).
Após absorvido, o etanol é metabolizado no fígado por oxidação via enzima citoplasmática álcool-desidrogenase (ADH), que trasnforma o etanol em aldeído acético. O aldeído acético é uma substância tóxica e deve ser rapidamente convertida pela enzima aldeído-desidrogenase (ALDH) em acetato – É neste ponto que a droga Dissulfiram age (uma das alternativas para tratamento em etilistas crônicos), inibindo a enzima acetaldeído desidrogenase e causando efeitos indesejáveis caso o usuário faça ingestão de álcool. A maior parte do acetato produzido atinge outras partes do organismo pela corrente sanguínea, onde participa de outros ciclos metabólicos. Além disso, o álcool inibe a neoglicogênese, processo hepático necessário para manter a glicemia na falta de carboidrato – com isso aumenta susetibilidade do usuário ter hipoglicemia. É válido lembrar que existem fatores subjetivos que influenciam o metabolismo do álcool, tais como: idade, estrutura física, vulnerabilidade genética e padrão de consumo.
A nível de SNC o etanol possui efeito depressor. Ele atua potencializando a ação do GABA – neurotransmissor inibitório no sistema nervoso central e bloqueando os receptores NMDA de glutamato, neurotransmissor excitatório. Seu efeito euforizante é resultado da ação inibitória que o álcool tem sobre o sistema nervoso. Também, o álcool age indiretamente sobre o sistema límbico, que tem um papel crucial na expressão das emoções e na atividade do sistema de recompensa do cérebro. A experiência do prazer acontece devido a interação de neurônios dentro do sistema límbico, por meio de diversos neurotransmissores, como por exemplo a dopamina. A dopamina é um dos neurotransmissores liberados pelo consumo de drogas e responsável pela sensação de bem-estar, fator preponderante para gerar dependência.
Manifestações clínicas
Antes de falar sobre as manifestações clínicas ocasionadas pela ingestão excessiva de álcool, vamos esclarecer alguns conceitos:
- Alcoolemia: trata-se do nível de álcool no sangue. Conforme dito anteriormente, sua concentração depende da forma como cada organismo metaboliza. Sendo assim, fatores como peso corporal, alimentação e padrão de consumo podem ou não aumentar a alcoolemia.
- Tolerância: segundo o DSM- 5, a tolerância é sinalizada quando uma dose acentuadamente maior da substância é necessária para obter o efeito desejado ou quando um efeito acentuadamente reduzido é obtido após o consumo da dose habitual. Assim como no caso da alcoolemia, o grau em que a tolerância se desenvolve varia de indivíduo para indivíduo.
- Intoxicação: trata-se de uma condição transitória, causada pela ingestão excessiva de bebida alcoólica, extrapolando o nível de tolerância do indivídio e gerando alterações físicas e psíquicas.
Os efeitos da intoxicação pelo etanol se devem aos níveis de concentração deste no sangue e no cérebro. A concentração de álcool acima de 25 mg/dL está associado a um quadro de intoxicação suave, manifestada por alterações no humor, falta de coordenação motora e prejuízo na cognição. Estas manifestações resultam de um envolvimento do córtex cerebral e do cerebelo (CHARNESS 1999). Quando a concentração de álcool é acima de 100 mg/dL hpa, ocorre o aumento do comprometimento orgânico e a pessoa apresenta visão dupla, confusão mental e aumenta a possibilidade de ocorrer hipoglicemia. As manifestações de acordo com a alcoolemia estão na tabela a seguir:
Manifestações da intoxicação de acordo com a alcoolemia.
Fonte: Livro Medicina de emergência: abordagem prática.
Manejo
A sequência do atendimento de uma intoxicação alcoólica aguda é relativamente simples. No momento de admissão, devemos coletar a história clínica e coletar os sinais vitais. O objetivo principal, inicialmente, é a estabilização clínica. Deve-se solicitar a glicemia capilar pensando no efeito hipoglicêmico ocasionado pelo álcool e também para auxílio de diagnóstico diferencial. Além disso, é importante buscar sinais de TCE devido ao risco aumentado de queda.
Os exames complementares são:
- Hemograma.
- Eletrólitos – incluíndo Ca e Mg.
- Gasometria arterial – para avaliação de uma acidose metabólica com ânion gap aumentado.
- TGO/TGP e GGT – para avaliação de dano/função hepática.
- Ureia e creatinina – avaliação de função renal.
- Os exames de imagem são úteis caso haja suspeita de algum trauma.
Em casos que o paciente está acordado, é essencial posicioná-lo em decúbito lateral, a modo de evitar a broncoaspiração em casos de êmese. Quando o paciente apresentar-se com agitação psicomotora ou agressividade, é possível utilizar de Haloperidol 5mg, via intramuscular (IM) aliado a contenção, visando acalmá-lo até os sintomas diminuírem. A droga de escolha será o haloperidol e não os benzodiazepínicos como medida inicial pelo risco dos benzodiazepínicos acentuarem a depressão do SNC, lembrando que isso é válido para todas as drogas que possuem ação depressora.
Em casos que há evidência clínica-laboratorial de hipoglicemia, deve-se, precedendo a infusão de soro glicosado, aplicar uma ampola de 100mg de Tiamnina (B1) IM pois trata-se de um co-fator no metabolismo da glicose. É crucial ressaltar que estamos partindo do pressuposto que o manejo é de um paciente em pronto-atendimento, então não possuímos uma história clínica muito vasta sobre os hábitos de consumo de bebida alcoólica deste paciente, sendo assim, a administração de Tiamina também serve para prevenir uma Síndrome de Wernicke, caso o paciente já possua deficiência de vitamina B1. Após a tiamina,recomenda-se a correção rápida com 5 ampolas de glicose a 50% até a correção e manter o paciente com soro glicosado a 5%.
Os pacientes intonxicados agudamente por etanol podem apresentar rebaixamento do nível de consciência, incapacidade de proteção de vias aéreas e eventual necessidade de intubação orotraqueal, sempre com a indução por sequência rápida. Além disso, deve-se realizar expansão volêmica e fazer uso de drogas vasoativas, em caso de hipotensão. Na ocorrência de convulsões, administra-se 5-10 mg de díazepam EV, repetindo a dose a cada 5 minutos (dose máxima de 30 mg em adultos), se necessário. Na indisponibilidade de acesso venoso, a opção é 10-15 mg de midazolam IM. Corrige-se a desidratação com soro fisiológico 0,9%.
Testes para avaliação de dependência
Feitos os passos iniciais e o manejo correto do nosso paciente, cabe a nós como profissionais que zelam pela saúde da comunidade investigar o padrão de consumo deste usuário. É importante alertar o paciente que não existe dose mínima considerada segura. A abordagem sobre o assunto deve ser feito de maneira respeitosa e rotineira e toda intoxicação aguda por álcool, mesmo que só suspeita, deve ser notificada. A fim de avaliar a presença ou não de uso abusivo de álcool pode-se utilizar o questionário de CAGE. A presença de duas ou mais respostas positivas no teste indicam uso abusivo e devemos direcionar este paciente para que busque auxílio na atenção primária.
Os padrões de consumo, segundo a Organização Mundial de Saúde são: consumo de risco, em que o padrão de consumo aumenta o risco de condições adversas para a saúde que, quando torna-se um hábito, é o consumo 20-40g para mulheres e 40-60g para homens. Já o consumo prejudicial, é aquele em que há prejuízo concreto para a saúde física e mental da pessoa, associado ao consumo regular de 40-60g de álcool para homens/mulheres. Enquanto o consumo episódico é aquele em que ocorrem problemas específicos àquele momento de consumo, de pelo menos 60g de álcool.
Resumo
O álcool é a droga mais utilizada no mundo e seu uso abusivo apresenta um risco à saúde pública, sendo responsável por 5,9% das causas de morte e acarretando prejuízos ao usuário e à sociedade em geral. Intoxicações agudas por álcool são recorrentes em pronto atendimentos e deve-se saber tratá-las. As manifestações clínicas incluem desde diminuição dos reflexos até o coma, sendo seus efeitos dose-dependentes. Por isso, é importante entender o processo de metabolização do etanol e seus efeitos – com destaque em sua ação a nível de SNC onde o etanol possui efeito depressor. Ele atua potencializando a ação do GABA – neurotransmissor inibitório no sistema nervoso central e bloqueando os receptores NMDA de glutamato, neurotransmissor excitatório. Também, é responsável por bloquear a gliconeogênese, facilitando a ocorrência de hipoglicemia em seus usuários.
O manejo dos pacientes intoxicados visa prevenir crises de hipoglicemia e manter um bom estado geral até que ocorra a eliminação completa da droga. Os tratamentos variam de acordo com o estado de consciência do indivíduo. Em casos de agitação psicomotora, aconselha-se contenção e uso de haloperidol. Em casos que há evidência clínico-laboratorial de hipoglicemia, deve-se adminstrar 100mg de Tiamina intramuscularar e, logo após, iniciar infusão de soro glicosado 5%. Se hipotensão, fazemos reposição volêmica somado ao uso de drogas vasoativas e à ocorrência de convulsões, administramos 5-10 mg de díazepam EV, repetindo a dose a cada 5 minutos (dose máxima de 30 mg em adultos), se necessário. Toda intoxicação aguda por álcool deverá ser notificada e o padrão de consumo deverá ser questionado.
Fonte:
https://www.sanarmed.com/intoxicacao-aguda-por-alcool-o-que-voce-precisa-saber-antes-de-atender-colunistas