“Esse canivete é bisturi; esse garfo, afastador; esse lençol, atadura; essa tábua, goteira; esse barbante, dreno; essa corda, garrote; esse serrote, serra; essa agulha de crochê, algália… Tudo serve. Vem inventado da cozinha, da despensa e das caixas de carapina — para transformar-se em instrumento cirúrgico.” O trecho em tela retirado do livro Baú de Ossos de Pedro Nava, relata o improviso da medicina de outrora. Contudo, este Autor, memorialista, jamais vislumbraria que tais improvisos, de intuito altruísta e heróico em abrandar o sofrimento ou mesmo de salvar a vida poderiam culminar com demandas judiciais no futuro.
Dois campos que apresentam conhecimentos distintos: Direito e Medicina , contudo, estão cada dia mais ligados devido a judicialização da Medicina. O profissional médico põe em prática conteúdos da literatura médica, propedêutica clínica, seguindo os ditames do seu Código de Ética. No momento que um paciente constata um tratamento impróprio ao que é professado por tal Código, existe a possibilidade de começar uma ação judicial. Assim, a judicialização da medicina consiste na disputa, em juízo, das conexões entre as partes afeitas na assistência em saúde como médicos, pacientes e instituições. O número cada vez maior de processos judiciais abrangendo a área da saúde nem sempre foi assim. Nos últimos 10 anos, têm-se observado um aumento expressivo dessas demandas judiciais. Exemplificando o crescimento do número de processos éticos-profissionais nos Conselhos Regionais e Federal de Medicina, foi em torno de 250% em apenas uma década. Não obstante 60% dos casos sejam julgados improcedentes, existe a obrigação de responder à ação judicial e custear honorários advocatícios, periciais e afins. Ainda, vale salientar que quando falamos dos abalos motivados por uma ação judicial, devemos considerar, preliminarmente, uma possível quebra da aliança terapêutica na relação entre médico e paciente, que deveria, de uma forma legítima, manter-se íntegra. Desse modo, o médico busca por medidas capazes de mantê-lo seguro em caso de judicialização. Portanto, tem crescido assustadoramente o mercado de seguro de responsabilidade civil profissional, que compreende uma companhia de seguro responsável por cobrir os gastos da ação judicial e de uma ocasional condenação.
Naturalmente, o efeito direto desse evento é o acréscimo dos custos em saúde, uma vez que o valor será somado aos serviços consumi- dos pelo paciente. As ciências médicas apresentam princípios fundamentais que devem ser cumpridos pelos médicos. Existe um Código de Ética que deve ser rigorosamente respeitado pelos médicos, tal documento contém normas e artigos que orientam quanto à prática legal da medicina. Todavia, existem situações conflitantes com as limitações de ordem moral e ética, como o que acontece no Brasil que é, muitas vezes, caótica. Situações estas que retratam uma realidade de hospitais lotados e mal equipados e que inviabilizam uma atuação da qualidade da equipe de saúde. Em face das restrições e das adversidades aos quais é sujeitada, a população se apresenta revoltada com o tratamento recebido. A avidez por justiça guia os pacientes a procurarem meios de buscar seus direitos. Assim, vão atrás dos recursos que são oferecidos, sendo o primeiro deles os veículos de comunicação. O segundo, é a judicialização da medicina, entrando com ações contra aqueles que, em tese, não lhes prestaram a assistência adequada.
Nesse sentido, a relevante condição que necessita ser considerada é: o médico é realmente o culpado? Ainda, ele procedeu de forma imprudente, imperita ou negligente com os pacientes do serviço? Suas circunstâncias, condições, ambiente de trabalho interferiram no trabalho médico? Estimar pela vida de um paciente reivindica a investigação de todas as condições envolvidas, de todos os meios possíveis e de quais desfechos que uma atitude médica pode causar. A medicina compreende várias especializações, as quais têm suas singularidades de contato com o paciente e seus procedimentos específicos. Quando tratamos da quantidade de processos, a especialidade mais inquiri- da em juízo é a Ginecologia e Obstetrícia. Um dos principais motivos envolvidos, na especialidade em questão, é a assistência prestada no parto, acontecimento no qual são idealizadas muitas esperanças e que exige sabedoria do especialista para a condução de forma correta.
Em segundo e terceiro lugar no ranking de judicialização, encontram-se, respectivamente, a área Ortopedia e a Cirurgia Plástica. Na cirurgia plástica , existem frequentes reclamações no que se refere aos resultados dos procedimentos estéticos e dos pactos feitos previamente a eles. Também, é oportuno ressaltar, que não cabe ao paciente provar que o profissional agiu errado. A responsabilidade da prova recai no médico, que deve mostrar que agiu corretamente. Desta feita, no seu trabalho, o médico deve esforçar-se em prestar um atendimento de uma forma cordial, empático as demandas sintomatológicas e sofrimentos do paciente, prestando todos os cuidados necessários.
Os prontuários devem ser preenchidos conforme os ditames médicos. Cópia de laudos, contratos de prestações de serviços e correlatos devem ser guardados. Por fim, retornando ao olhar do memorialista Nava, que resgata histórias dos seus antepassados , entrevemos que a medicina era uma ciência poética, não cabia o mecanicismo e tampouco a judicialização da sua “arte”: os médicos desfrutavam de grande respeito e credibilidade em toda a sua narrativa, uma vez que lidavam com o tratamento das nossas mais dramáticas necessidades existenciais – aliviar a dor do corpo/alma e prolongar a vida.
Fonte:
Judicialização da medicina: o aumento das demandas judiciais