Após ter ingressado na faculdade de medicina, ouvi por algumas vezes a frase: “você já está parecendo um médico”, ou como diz no interior, “já tá com a cara de médico”. Talvez essa frase se referia ao meu modo de me vestir e me comportar, afinal, a visão que a sociedade tem sobre o médico é de alguém sério, inteligente, sempre bem limpo e arrumado, seja de terno e gravata ou de jaleco, e “humanizado”.
Figura 1. Fonte: Autor, 2020.
Afinal, o que define a “cara” do médico? Como está a tendência sobre a forma como o médico deve se vestir no Brasil e no mundo? Há alguma diferença do Brasil para outros países? Sim, há muitas diferenças, e essas diferenças estão começando (ou já começaram) a interferir a aparência médica em nosso país, e é sobre isso que falaremos a seguir.
Um Breve histórico
De acordo com pai da medicina, Hipócrates,
“Quando um médico entra em contato com um doente, convém estar atento ao modo como se comporta; deverá estar bem-vestido, ter uma fisionomia tranquila, dar toda a atenção ao paciente, não perder a paciência e ficar calmo em presença de dificuldades. É um ponto importante para o médico ter uma aparência agradável, porque aquele que não cuida do próprio corpo não está em condições de se preocupar com os outros” (1).
Embora a medicina seja uma profissão milenar, o percepção da roupa do médico como um equipamento de proteção individual só surgiu a partir da descoberta de microorganismos e de suas infecções. A primeira menção do famoso traje dos médicos da peste é encontrada em uma obra de meados do século XVII, escrita por Charles de Lorme. Ele era médico real no serviço do rei Luís XIII da França.
Lorme escreveu que, durante um surto de peste em 1619 em Paris, desenvolveu uma roupa feita inteiramente de couro de cabra marroquino. A vestimenta, denominada ‘frock coats’ incluía também calças, casaco longo, chapéu e luvas, enquanto a máscara de bico permitia que o médico respirasse o ar “purificado”. O couro era encerado para repelir qualquer fluido corporal durante as visitas aos pacientes. Ervas e especiarias perfumadas eram colocadas dentro da máscara de bico para filtrar o ar e proteger o usuário da ‘miasmata’ – vapores nocivos que eram considerados infecciosos (2,3).
Figura 2. “Doutor Schnabel von Rom”, por Paulus Fürst. Fonte: Socientífica, 2020.
A figura acima (figura 2), erroneamente divulgada como sendo de médico da idade média em período de “peste negra”, trata-se de uma das obras de Paulus Fürst, de 1656, chamada “Doutor Schnabel von Rom” ou “Doutor Beaky de Roma”, copiava a ilustração de Altzenbach, um gravador alemão que publicou uma imagem popular de um médico durante um surto em Roma e Nápoles em 1956, em trajes completos, com um texto descrevendo como a roupa protegia o usuário contra a morte (2).
Na segunda metade do século XIX, médicos e cirurgiões começaram a usar aventais brancos em vez dos ‘frock coats’. Com maior ênfase em higiene e saneamento até o final do século, aventais brancos, luvas esterilizadas, e máscaras foram logo introduzidos nas salas de cirurgia, com William Stewart Halsted introduzindo o uso de luvas de borracha em 1889. Máscaras e luvas se tornariam ainda mais comuns após a Primeira Guerra Mundial e a epidemia de gripe espanhola de 1918 (3).
Figura 3. Fonte: Autor, 2020.
Afinal, usar ou não usar?
Em um artigo sobre a aparência do médico, o professor Celmo Celeno Porto (4), da faculdade de Goiás afirma que “O uso de roupa branca, sob a forma de um jaleco sobre o uniforme branco ou sobre a roupa comum, além de seu significado simbólico, contribui para uma boa aparência e funciona como equipamento de proteção individual. Por isso, o uniforme não deve dispensar o uso do jaleco branco, que só deve ser usado dentro do hospital ou das instituições que atendem pacientes […] as vestes brancas tem também um simbolismo e significam preocupação com a limpeza e higiene por parte de quem as traja”.
Todavia, temos visto cada vez mais, a figura do médico trajando roupas comuns do dia-a-dia durante seu atendimento, ou uniformes hospitalares por vezes sem uso de avental ou jaleco. Isso representa falta de higiene?
O jaleco realmente é um EPI ou uma fonte de contaminação e propagação de microrganismos intra-hospitalar?
Nos últimos anos, os aventais brancos foram atacados por razões que variam do elitismo, da ansiedade do paciente e do risco de contaminação (3). Diversos países, incluindo alguns locais no Brasil, o uso de Jaleco fora do ambiente hospitalar além de ser considerado falta de higiene, risco na biossegurança, também é crime. Porém, vemos que essa prática ainda é comum entre médicos e principalmente entre estudantes da saúde.
Durante uma reunião do Alpha Squad, um excelente projeto da Academia Médica, a Dra. Ana Panigassi, comentou sobre o médico na Irlanda, onde mora atualmente, mencionando que estão abandonando o uso do avental, pois há grande acúmulo de sujeira em sua manga, facilitando a transmissão de doenças infecciosas.
No Reino Unido, em 2007, fora proibido o uso de jaleco branco até mesmo dentro dos hospitais, também com o objetivo de diminuir as infecções hospitalares. Em um ensaio randomizado, a SHEA (Society for Healthcare of American) testou se a transmissão de agentes patogênicos ocorre com menor frequência quando os profissionais usam jaleco de manga curta quando comparado ao de manga comprida. Contaminação com o marcador de DNA foi detectada significativamente mais frequentemente nas mangas e / ou punhos dos profissionais e em superfícies do ambiente adjacentes ao segundo manequim quando jalecos de manga longa foram usados, fornecendo assim recomendações para que os profissionais usem jalecos de mangas curtas (5).
Em uma postagem sobre o uso correto de EPI’s, o Instituto de Prevenção do Câncer do Ceará afirma que estudos realizados, inclusive no Brasil, respaldam essa preocupação e confirmam que o vestuário utilizado no cotidiano do profissional de saúde pode ser considerado um potencial reservatório para a transmissão de microrganismos envolvidos na ocorrência das Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde (IRAS).
Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) detectou a presença de bactérias em 95,8% dos jalecos médicos analisados. Dentre elas estava a Staphilococcus aureus, principal responsável pelas infecções hospitalares. Estudo realizado pelo Instituto de Microbiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) revelou que alguns tipos de bactérias se mantêm por até dois meses no jaleco e pelos menos 90% delas resistem no tecido durante 12 horas. Os próprios estudos confirmam que os jalecos são transmissores potenciais de organismos multirresistentes (6).
Em contrapartida, pesquisadores de um hospital público em Denver, nos EUA, realizaram uma pesquisa comparando a contagem de colônia bacteriana entre jalecos e uniformes manga curta, após 8 horas de trabalho. Não houve diferença estatisticamente significante entre a contaminação dos aventais e dos uniformes, ou mesmo entre os punhos dos grupos participantes após 8 horas de trabalho.Com base nisso, não haveria nenhum motivo para trocar o uso dos aventais ou jalecos (7).
Além disso, na Corea, Heesu Chung et al evidenciaram em um estudo que o uso do jaleco branco é predominantemente melhor visto pelos pacientes, pois os pacientes preferiram jaleco branco e vestimenta tradicional do que outras vestimentas, dando maiores pontuações ao jaleco branco em competência, confiabilidade e preferência de vestimenta (1).
Vele ressaltar que o uso de jaleco ou avental fora do ambiente hospitalar é sem dúvida um grande afronto a biossegurança, indiscutível.
O fato é que a medicina está mudando, o comportamento e a aparência dos médicos também, só devemos direcionar para que seja para o melhor caminho, em busca da segurança do profissional e dos pacientes.
Fonte:
https://academiamedica.com.br/blog/jaleco-usar-ou-nao-a-imagem-do-medico-em-constante-mudanca