Patrícia Fernanda Schuck (professora da UNA SAU)
“Deficiência Intelectual (DI) sem causa aparente tem se tornado uma grande preocupação de saúde pública, afetando aproximadamente 3% da população pediátrica mundial. É a terceira condição neurológica mais prevalente, atrás apenas de paralisia cerebral e epilepsia. No entanto, apesar dos grandes avanços na área de neurologia, muitos pacientes continuam sem diagnóstico. Identificar as causas da DI é um grande desafio, especialmente considerando as várias doenças ou fatores ambientais que podem levar a essa condição. Nesse contexto, estudos recentes demonstram que alterações genéticas são causas frequentes de DI, sendo identificadas em aproximadamente 50% dos pacientes acometidos por DI.
Erros inatos do metabolismo, também conhecidos como doenças hereditárias do metabolismo, são doenças genéticas crônicas que podem apresentar o início das manifestações clínicas em qualquer idade, no entanto, é o surgimento desses sinais no período neonatal ou na primeira infância. Nos erros inatos do metabolismo, ocorre a deficiência ou ausência de uma proteína, geralmente uma enzima, levando à diminuição dos níveis plasmáticos e teciduais de substâncias importantes para o metabolismo normal e/ou ao acúmulo de outras potencialmente tóxicas para o organismo. Isoladamente, são doenças raras e pouco conhecidas, com uma prevalência individual que pode variar entre 1:6.500 a 1:500.000 recém-nascidos, sendo, dessa forma, muitas vezes negligenciadas e subdiagnosticadas. Entretanto, quando tomadas em seu conjunto, são bastante comuns, afetando aproximadamente 1 a cada 500/1.000 nascidos vivos. Muitas dessas doenças podem ser tratadas com controles dietéticos rígidos e/ou fórmulas alimentares específicas para cada doença, através da restrição da ingestão dos precursores de metabólitos tóxicos. Outras, no entanto, apesar da possibilidade de diagnóstico nos testes de triagem neonatal em alguns países do mundo, não são investigadas nesses exames devido à inexistência de tratamento eficaz disponível.
As manifestações clínicas dos erros inatos do metabolismo são inespecíficas e se confundem, muitas vezes, com outras doenças mais comuns, fator que colabora para o diagnóstico errôneo deste grupo de doenças. Pacientes afetados por erros inatos do metabolismo podem apresentar episódios recorrentes de descompensação metabólica, com alterações em múltiplos órgãos, sintomas neurológicos agudos ou progressivos e atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, além de apresentarem, frequentemente, problemas comportamentais e de aprendizado.
Na última edição do livro The Metabolic and Molecular Bases of Inherited Disease, considerado a principal literatura científica relacionada a estas doenças, mais de 500 erros inatos do metabolismo diferentes foram descritos, sendo apontadas, inclusive, as causas bioquímicas que levam a cada um desses. Alguns deles podem ser diagnosticados nos programas de triagem neonatal de diferentes países, mais conhecido no Brasil como “Teste do Pezinho”. Desde a publicação da Portaria GM/MS nº 822, em 6 de junho de 2001, todos os estados brasileiros contam com pelo menos um Serviço de Referência em Triagem Neonatal, oferecendo este serviço gratuitamente a todas as crianças nascidas em território nacional para o diagnóstico de hipotireoidismo congênito, fenilcetonúria, hemoglobinopatias e fibrose cística – os testes diagnósticos disponíveis podem variar dependendo do estado. Além disso, também é possível pesquisar outros erros inatos do metabolismo em laboratórios especializados no país, como por exemplo, a deficiência da desidrogenase de acil-CoA de cadeia média (MCAD), a doença do xarope do bordo, a galactosemia e a frutosemia, dentre outras. Esses outros testes, porém, não são fornecidos pelo governo e, portanto, não são gratuitos. Diversos estudos relacionam a ocorrência de DI em erros inatos do metabolismo. Para se ter uma ideia desta interação, pesquisando-se em bases de dados internacionais, há mais de 7.300 estudos relacionando os temas “erros inatos do metabolismo” e “Deficiência Intelectual”. A primeira menção a essa interação foi feita, em 1968, por Charles Scriver (considerado até um hoje um dos grandes pesquisadores na área de erros inatos do metabolismo) e seus colegas, sugerindo uma possível relação entre DI e algumas doenças genéticas por eles estudadas, entre elas, a fenilcetonúria.
FENILCETONÚRIA
A fenilcetonúria, talvez o erro inato do metabolismo mais conhecido e estudado, é uma doença de herança autossômica recessiva, ou seja, é necessário herdar um gene alterado da mãe e um do pai para que a criança seja afetada. A doença é causada pela deficiência de uma enzima chamada fenilalanina hidroxilase, que é responsável pelo metabolismo da fenilalanina, um aminoácido essencial ao organismo. A fenilalanina está presente normalmente em nosso organismo e é de extrema importância para o bom funcionamento dele. Por se tratar de um aminoácido essencial, a fenilalanina deve ser obtida exclusivamente através da dieta, especialmente pelas proteínas. Uma pessoa saudável consegue metabolizar adequadamente este aminoácido, mas pessoas afetadas pela fenilcetonúria não conseguem. Consequentemente, ocorre um acúmulo desse aminoácido nos órgãos e tecidos destes pacientes, além de outros compostos formados a partir do metabolismo da fenilalanina. Um excesso de fenilalanina pode ser tóxico ao organismo, podendo causar danos irreversíveis aos pacientes.
A prevalência mundial da fenilcetonúria é de aproximadamente 1 a cada 10.000 neonatos. No Brasil, a prevalência, segundo dados do Ministério da Saúde referente ao ano de 2007, é estimada em 1 a cada 23.000 nascidos vivos. Atualmente, pode-se diagnosticar a fenilcetonúria no Teste do Pezinho simples, independentemente do estado brasileiro. É importante salientar que esse teste deve ser realizado nos primeiros dias de vida da criança, pois, se diagnosticada precocemente, pode-se prevenir muitos dos danos neurológicos que podem acometer os pacientes afetados pela fenilcetonúria. Entretanto, se não for diagnosticada precocemente ou se a doença não for tratada adequadamente, o paciente pode apresentar sequelas graves por toda sua vida. O tratamento dietético da fenilcetonúria baseia-se na restrição de proteínas que contenham fenilalanina na alimentação e o uso de fórmulas específicas para cada idade do paciente, e deve ser realizado por toda vida. Atualmente, podem ser encontrados, inclusive, livros de culinária dedicados exclusivamente a fornecer receitas adequadas para pacientes fenilcetonúricos. Por outro lado, como há a necessidade de se reduzir ao mínimo necessário a fenilalanina proveniente da dieta, deve-se suplementar a dieta com proteínas ricas em substâncias derivadas da fenilalanina e que, no caso dos afetados pela fenilcetonúria, não são produzidas. Exemplo maior destas substâncias é a tirosina, um aminoácido que, por ser formado a partir da reação catalisada pela enzima que está alterada na fenilcetonúria, encontra-se deficiente nos pacientes fenilcetonúricos. Ela é de extrema importância para o desenvolvimento adequado do cérebro e sua deficiência pode ocasionar alterações cerebrais. À deficiência de tirosina também se deve a hipopigmentação da pele, dos olhos e dos cabelos dos pacientes, por isso geralmente os fenilcetonúricos têm pele, olhos e cabelos claros.
Do ponto de vista neurológico, os sinais e sintomas apresentados por pacientes acometidos pela fenilcetonúria se manifestam já nos primeiros meses de vida e incluem atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, irritabilidade, dificuldade de aprendizado, déficit de atenção, distúrbios comportamentais e hiperatividade. Entretanto, deve ser salientado que a principal e mais grave manifestação neurológica apresentada por estes pacientes é a DI, resultando em dificuldade para aprender, entender e realizar atividades que podem ser consideradas comuns para as outras pessoas.
POSSÍVEIS CAUSAS DA DI NA FENILCETONÚRIA
Diferentemente da DI provocada por outras etiologias, em que muitas vezes não se chega a estabelecer claramente a origem da deficiência, na fenilcetonúria sabe-se que o aumento de uma substância tóxica no cérebro dos pacientes, neste caso a fenilalanina, pode levar à DI e que o tratamento é capaz de prevenir os sintomas clínicos. De fato, a fenilcetonúria foi o primeiro erro inato do metabolismo em que foi identificada a relação entre o aumento de uma substância tóxica e o desenvolvimento da DI, sendo que, dos mais de 6.700 artigos científicos publicados sobre fenilcetonúria na literatura internacional, aproximadamente 730 relatam DI associada a essa doença. Atualmente, a fenilcetonúria é um dos erros inatos do metabolismo mais estudados e, nos dois últimos anos, o periódico Molecular Genetics and Metabolism, a publicação oficial da Sociedade para Doenças Metabólicas Herdadas (Society for Inherited Metabolic Disorders) publicou edições especiais abordando exclusivamente trabalhos relacionados à fenilcetonúria, incluindo revisões sobre os mecanismos de toxicidade que podem levar aos danos neurológicos observados nos pacientes, além de estratégias de diagnóstico e tratamento (Management of Phenylketonuria: Current Position, 2011 e Phenylketonuria, Psychology and the Brain, 2010). Entretanto, apesar da toxicidade da fenilalanina ser bastante conhecida até o momento, existem alguns poucos indivíduos afetados pela fenilcetonúria que, mesmo com um pobre controle da dieta e, consequentemente, com elevação crônica dos níveis plasmáticos de fenilalanina, parecem ficar livres de qualquer dano neurológico importante. Pode ser especulado que essa “proteção” ocorre ao nível da barreira hematoencefálica, que, como o nome diz, funciona como uma barreira e resguarda o cérebro da exposição a algumas substâncias potencialmente tóxicas que se acumulam na corrente sanguínea, como a fenilalanina em pacientes fenilcetonúricos. Essa proteção ocorre, pois a barreira hematoencefálica permite a passagem de algumas substâncias, incluindo alguns nutrientes essenciais, apenas com a participação de um transportador específico, resultando, assim, em um controle sobre a entrada destes compostos. No caso da fenilalanina, o transportador que atua é o transportador de aminoácidos longos de cadeia neutra que é capaz de transportar, além da fenilalanina, outros aminoácidos como a tirosina, o triptofano, a leucina, a isoleucina e a valina. Dessa forma, não se pode descartar que a diminuição nos níveis de outros aminoácidos neutros de cadeia longa no sistema nervoso central, como por exemplo, a tirosina e o triptofano, possa atuar também como um importante mecanismo fisiopatológico levando aos danos neurológicos observados em pacientes com fenilcetonúria, uma vez que estes aminoácidos, além de serem fundamentais para a síntese proteica, são também precursores de importantes neurotransmissores. Neste sentido, já foi descrita uma relação entre alterações na substância branca e déficits neurológicos específicos em crianças com fenilcetonúria, que resultariam de uma atividade da dopamina (um importante neurotransmissor) reduzida no córtex pré-frontal devida a dietas insuficientemente restritas em fenilalanina.
IMPORTÂNCIA DO DIAGNÓSTICO PRECOCE NA PREVENÇÃO DA DI
Quase todos os indivíduos com fenilcetonúria clássica não tratados apresentam uma importante DI, geralmente com um quociente de inteligência (QI) menor do que 30. Foi também descrito que, a cada dez semanas de atraso no início do tratamento, um paciente pode perder, em média, cinco unidades de QI. O tratamento adequado com uma dieta com um baixo teor de fenilalanina mantém os níveis plasmáticos desse aminoácido na faixa 2-6 mg/dL até a adolescência, o que poderia eliminar virtualmente todos os efeitos adversos relacionados ao desenvolvimento intelectual. Neste sentido, foi recentemente descrito no editorial do periódico Molecular Genetics and Metabolism que “a combinação de detecção precoce ao nascimento e aderência a uma dieta com baixo teor de fenilalanina preveniu todos os casos de DI em crianças nascidas com fenilcetonúria”.
Entretanto, apesar de todos os esforços e da melhoria das fórmulas dietéticas com o passar do tempo, pode-se observar que mesmo os pacientes que seguem o tratamento ainda apresentam retardo no crescimento e DI. Seu QI, apesar de atingir valores normais, ainda é menor do que o de seus irmãos não afetados pela doença e o de seus colegas de sala de aula. Os pacientes fenilcetonúricos tratados frequentemente apresentam alterações no desenvolvimento de algumas funções neurológicas, levando a resultados insatisfatórios no desempenho escolar. Esses pacientes também podem apresentar ansiedade, depressão e baixa autoestima, além de outros transtornos psiquiátricos e comportamentais. Além disso, alguns sintomas específicos, como déficit nas funções executivas, de atenção e na habilidade visual-espacial, continuam sendo observados em alguns indivíduos que foram diagnosticados precocemente e mantidos em dieta continuamente, mas com níveis de fenilalanina moderadamente elevados. Esses achados estão de acordo com um estudo pioneiro publicado por Berman e colaboradores em 1966, em que foi postulado que: “Enquanto crianças fenilcetonúricas mostraram ganhos significativos na taxa de desenvolvimento e QI durante o tratamento dietético, o fato de que estas crianças não atingem taxas tão altas quanto seus irmãos não afetados sugere que alguns dos efeitos da fenilcetonúria continuam operativos mesmo quando os níveis plasmáticos de fenilalanina são controlados”.
Podemos, assim, concluir a partir destas informações que algum grau de reversibilidade dos sintomas neurológicos pode ser obtido através da implementação rigorosa da dieta restrita em fenilalanina, ainda que tardia. Estas observações não diminuem a necessidade da detecção precoce da fenilcetonúria, bem como do início imediato do tratamento dietético, mas fornecem uma esperança para todas as famílias que lidam com pacientes afetados pela fenilcetonúria.
CONCLUSÃO
Apesar dos esforços científicos no intuito de disponibilizar novas estratégias terapêuticas e das observações de que alguns dos sintomas apresentados por pacientes afetados pela fenilcetonúria são reversíveis mesmo com o início tardio do tratamento, algumas limitações sociais e intelectuais ainda são consideradas irreversíveis. Dessa forma, o diagnóstico precoce e a implementação imediata da dieta restrita em fenilalanina continua sendo o tratamento mais eficaz para fenilcetonúricos, sendo capaz de prevenir os principais achados neurológicos e a DI na maioria dos casos.
REFERÊNCIAS
SCRIVER, C.R.; BEAUDET, A.L.; SLY, W.S.; VALLE, D. The metabolic and molecular bases of inherited disease. New York: McGraw-Hill, 2001.
VAN KARNEBEEK, C.D.; STOCKLER, S. Treatable inborn errors of metabolism causing intellectual disability: a systematic literature review. Molecular Genetics and Metabolism, v. 105, n. 3, p. 368-381, 2011.
MONTEIRO, L.T.B.;, CÂNDIDO, L.M.B. Fenilcetonúria no Brasil: evolução e casos. Revista de Nutrição, v. 19, n. 3, p. 381-387, 2006.
http://www.unesc.net/portal/blog/ver/307/21288
Escrito para a revista DI, do Instituto APAE de São Paulo”.