Covid-19: como manejar ventilação mecânica em pacientes com comorbidades?
Muitos elementos dos cuidados intensivos fazem parte do dia a dia do médico, independente da especialidade. Complicações clínicas, procedimentos, protocolos de sepse, dentre outros elementos do tipo estão presentes não só em cenários de UTI, mas também em pronto-atendimentos e enfermarias. E, apesar disso, pouco se aprende sobre suporte avançado de vida nas faculdades de Medicina.
Dentre os conhecimentos da terapia intensiva, um dos que mais gera receio entre os profissionais da saúde é a ventilação mecânica (VM). Vários parâmetros a serem monitorados, máquinas com muitos botões e natureza crucial desse suporte para a sobrevivência do paciente são alguns dos motivos para esse sentimento.
Ventilação mecânica na Covid-19
Atualmente, em meio à pandemia da Covid-19, o assunto adquiriu ainda mais importância, uma vez que os pacientes acometidos devem ser submetidos a intubação precoce e muitos médicos se vêem na iminência da convocação para manejar pacientes graves.
Dentre os acometidos, os que têm pior desfecho nessa nova doença são os pacientes com comorbidades. Muitas doenças, por sua vez, sofrem influência da ventilação mecânica (algumas melhorando e outras piorando), o que com frequência torna o manejo desse tipo de intervenção ainda mais complicado. Por mais que existam recomendações já bem firmadas para o manejo da VM na Covid-19 (geralmente, os parâmetros de ventilação protetora), saber ajustar o suporte ventilatório ao perfil de comorbidades de cada paciente individual pode ser uma carta na manga para melhorar suas chances de sobrevivência.
Logo, vamos revisar aqui algumas particularidades do manejo da VM nas comorbidades mais comuns na prática clínica.
Cardiopatias
A dinâmica cardiovascular é toda baseada em variações de pressão. Fisiologicamente, a pressão intratorácica diminui no momento da inspiração devido à ação do diafragma e, com isso, influencia tão o sistema respiratório quanto o cardiovascular.
Na VM, ao contrário, temos um aparelho ativamente injetando ar nas vias aéreas. O resultado é uma pressão intratorácica positiva que resulta, conforme esperado, em uma dinâmica cardiovascular diferente.
O aumento da pressão intratorácica atua sobre as câmaras direitas reduzindo o retorno venoso e o débito cardíaco direito, enquanto que sobre as câmaras esquerdas ocorre uma redução da pós-carga. Esse último efeito ocorre porque, calculando a diferença entre a pressão externa sobre o miocárdio (agora positiva pela VM) e a pressão interna, a pressão transmural se torna menor que a fisiológica, diminuindo a força contrátil necessária para manter o débito cardíaco.
Não é de surpreender que esse segundo efeito seja até mesmo desejável, especialmente em casos de insuficiência cardíaca (IC) descompensada ou de doença arterial coronariana (DAC), em que a redução do trabalho do miocárdio contribui reduzindo sua demanda energética.
Contudo, toda a cadeia de eventos hemodinâmicos gerados pela pressão positiva da VM comumente resulta em queda da pressão arterial média (PAM). No caso da ventilação protetora, como a usada na Covid-19, existe um risco especialmente importante para isso: um dos parâmetros ventilatórios mais importantes nesse caso é a PEEP e quanto mais altos seus valores, maior a repercussão hemodinâmica da VM.
Na ventilação protetora, utiliza-se a PEEP, muitas vezes em valores altos, para tentar garantir uma troca gasosa adequada. Logo, manejar essa estratégia de VM em pacientes cardiopatas pode ser particularmente desafiador. Há, porém, formas de driblar esses efeitos.
Considerando-se que o débito cardíaco resulta de uma relação entre a capacidade de ejeção do coração e a resistência (pós-carga) contra a qual ele opera, o raciocínio fica simples: se a VM já diminui a pós-carga, interferir na capacidade de ejeção pode ajudar a compensar a falência hemodinâmica resultante dela. E, quando falamos em capacidade de ejeção, falamos de dois elementos essenciais para o volume sistólico: o status de volume intravascular e a contratilidade miocárdica.
Medidas como pressão venosa central, saturação venosa central, lactato, déficit de bases e outras podem fornecer elementos para se interpretar se hipovolemia ou descompensação de uma IC de base estão contribuindo para o choque. A correção desses dois parâmetros com soroterapia e inotrópicos frequentemente ajuda no controle do impacto hemodinâmico da VM em cardiopatas.
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Contudo, vale lembrar que a ventilação protetora, incluindo a da Covid-19, envolve manejo conservador da soroterapia, uma vez que o balanço hídrico positivo pode piorar os parâmetros ventilatórios e a troca gasosa.
Também é importante lembrar que os esforços na VM protetora giram em torno de tentar manter oxigenação tecidual adequada. Na fórmula do fornecimento de O2 tecidual (o DO2), um dos multiplicadores é justamente o débito cardíaco. Portanto, o aumento da PEEP, mesmo auxiliando na dinâmica ventilatória, só vai ajudar na real oxigenação tecidual se quaisquer efeitos negativos da pressão positiva forem levados em consideração e compensados (com manejo da volemia e da contratilidade miocárdica).
Além disso, deve-se tomar cuidado com a oxigenação excessiva. Estudos mostram que a hiperóxia arterial tem sido associada a maior resistência vascular periférica, menor débito cardíaco e até mesmo redução do fluxo coronariano.
DPOC e asma
As doenças pulmonares obstrutivas (especialmente a DPOC) são particularmente difíceis no manejo da VM. Afinal, o problema-chave de cada uma dessas doenças está justamente no próprio pulmão. Devido a todas as particularidades envolvidas na ventilação de pacientes com essas comorbidades, não existem recomendações bem estabelecidas quanto ao modo ventilatório mais adequado, por exemplo.
Em geral, o foco principal da ventilação mecânica na DPOC é manter volume-minuto (o produto entre o volume corrente e a frequência respiratória) em torno de 115 mL/kg. Isso porque a dificuldade ventilatória é a base da doença e a maior parte das complicações (da hipoxemia à hipercapnia) resultam dela. Naturalmente, esses pacientes necessitam de um volume-minuto maior para compensar o espaço-morto resultante do aprisionamento aéreo fisiológico que apresentam.
Portanto, considerando essa necessidade de controle do volume-minuto, o modo volume-controlado da VM geralmente é o mais adequado, pois permite o ajuste dessa variável de forma mais precisa.
E é aí que surge um dos principais desafios em pacientes com DPOC e síndrome da angústia respiratória (SARA), como é o caso de pacientes com Covid-19. Na ventilação protetora recomendada, o volume corrente indicado é restrito no valor de 6 mL/kg de peso predito com o objetivo de evitar volutrauma e barotrauma. Consequentemente, usando a fórmula do volume-minuto, sobraria a frequência respiratória como parâmetro possível de ser usado para atingir a ventilação alveolar adequada.
Porém, pela restrição do fluxo expiratório, pacientes com DPOC (e também os com asma) têm tendência a apresentar aprisionamento aéreo e a chamada hiperinsuflação dinâmica. Pela resistência aumentada das vias aéreas, esses pacientes precisam de um tempo expiratório prolongado para esvaziar adequadamente os pulmões e não é raro que, na VM, a próxima inspiração seja disparada antes que a quantidade adequada de ar tenha sido expirada.
Consequentemente, a cada ciclo, o pulmão aprisiona mais ar e com isso a pressão intra-alveolar vai aumentando, gerando o que chamamos de auto-PEEP. A auto-PEEP pode ser identificada quando a pressão de pico vai progressivamente aumentando durante o modo volume-controlado e também no gráfico de tempo x fluxo (que vai acusar a inspiração sendo iniciada antes que o fluxo expiratório atinja o valor zero). Ela pode até ser quantificada medindo-se a pressão de abertura das vias aéreas durante uma pausa ventilatória no fim da expiração (nesse caso, o paciente precisa estar totalmente sedado e entregue à ventilação para que a medida seja acurada).
A auto-PEEP dificulta a dinâmica ventilatória, muitas vezes levando o paciente a disparar movimentos inspiratórios e perder a sincronia com a VM. Além disso, a pressão intratorácica gradualmente maior pode levar a comprometimento hemodinâmico e até a barotrauma e pneumotórax.
Para corrigir a auto-PEEP, as seguintes medidas são recomendadas:
- Reduzir o volume-minuto e aumentar o tempo expiratório: essa é uma situação em que reduzir o volume-minuto pode ser necessário e, portanto, aceita-se uma hipercapnia permissiva até que o problema esteja resolvido (desde que o pH não caia abaixo de 7,20). Para isso, deve-se reduzir o volume corrente e/ou a frequência respiratória, além de reduzir a relação I:E (de preferência, 1:3);
- Ajustar a sensibilidade do ventilador: em geral, recomenda-se que a sensibilidade do ventilador seja mantida em -1,0 ou -2,0 em pacientes com DPOC e asma, tanto nos modos guiados por pressão quanto volume. O objetivo aqui é, principalmente, reduzir o esforço inspiratório do paciente, tornando o disparo do ventilador mais fácil. Porém, se a sensibilidade estiver muito baixa, os disparos podem acontecer de forma excessiva (auto-ciclagem) e, com isso, a auto-PEEP pode piorar. Ajuste, portanto, deve ser feito em sincronia aos demais parâmetros e avaliando-se a resposta do paciente momento a momento;
- Aplicar PEEP extrínseca: apesar de parecer contraditório, o uso da PEEP pode ajudar a compensar pacientes com auto-PEEP. É importante notar, entretanto, que o uso da PEEP não ajuda a corrigir a hiperinsuflação, mas sim a reduzir o esforço respiratório do paciente e a perda de sincronia com a VM. A matemática é simples: se o paciente estiver com uma auto-PEEP de 10 cmH2O e sensibilidade da VM em -2,0 cmH2O, ele terá que reduzir a pressão alveolar 12 cmH2O para disparar um ciclo do ventilador. Aplicando-se uma PEEP de 5 cmH2O, por exemplo, a redução terá que ser apenas de 7 cmH2O, reduzindo-se assim o esforço ventilatório.
Caso ocorra instabilidade hemodinâmica resultante da auto-PEEP elevada ou de barotrauma, a desconexão imediata da VM é necessária. Porém, no caso específico da Covid-19, tal desconexão é contraindicada pelo risco de aerolização e, portanto, controlar a hiperinsuflação antes que ela atinja níveis críticos é mandatório. O uso de medicações como broncodilatadores (de curta e longa duração) e corticoides pode auxiliar muito, tanto prevenindo broncoespasmos quanto controlando exacerbações que pioram a dinâmica ventilatória.
Cirrose
Esse é um campo mais obscuro dos cuidados intensivos, especialmente quando falamos em ventilação mecânica. Isso porque boa parte das pesquisas no assunto excluem pacientes portadores de cirrose da população estudada. Consequentemente, há pouquíssimas evidências para nortear esse manejo e boa parte delas se dedicam a estudar mais os pacientes na fila de transplantes.
Duas condições particulares dos cirróticos são responsáveis por complicar a dinâmica respiratória: a síndrome hepatopulmonar e a hipertensão portopulmonar. Na primeira, o shunt gerado pela vasodilatação pulmonar faz com que mais sangue circule por alvéolos mal-perfundidos (que, originalmente, sofreriam vasoconstrição), aumentando assim o espaço-morto. Na segunda, a hipertensão portal se reflete em hipertensão pulmonar, o que por si só compromete a circulação pulmonar afetando as câmaras direitas do coração.
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Logo, fica claro por que esses pacientes são particularmente difíceis de ventilar. Entretanto, devido à escassez de evidências científicas no assunto, não há recomendações específicas para a ventilação mecânica em pacientes cirróticos.
O que as pesquisas apontam são alguns pontos que demandam certa atenção:
- Devido às alterações da circulação pulmonar, pacientes cirróticos são frequentemente difíceis de oxigenar. Na tentativa de ajustar os parâmetros ventilatórios para melhorar essa oxigenação, torna-se fácil exagerar e acabar gerando barotrauma. Logo, investir em outras medidas que não envolvam os parâmetros ventilatórios de manutenção pode ajudar e ainda evitar iatrogenias. Entre essas medidas estão a posição prona e manobras de recrutamento, por exemplo.
- Alguns especialistas sugerem que o óxido nítrico pode ser útil no controle da hipertensão porto-pulmonar e, portanto, pode ajudar na oxigenação. Porém, não existem estudos com melhor qualidade de evidência comprovando esse efeito.
- Normalmente, pacientes cirróticos tendem a hiperventilar e a evoluir com alcalose respiratória crônica. Como consequência, a queda compensatória do bicarbonato os torna propensos à acidose quando entram em ventilação mecânica, especialmente pela má depuração de ácidos orgânicos como o ácido lático. Por isso, manter a hipercapnia permissiva da ventilação protetora pode ser particularmente difícil pela necessidade de correção dos distúrbios ácido-básicos. Medidas que auxiliam na ventilação (como a posição prona citada anteriormente) podem ser úteis aqui também e a utilidade da reposição de bicarbonato ainda não foi estudada a fundo (mas pode ser um recurso a se considerar).
- É importante se atentar para derrames cavitários! Ascite e derrame pleural volumosos podem comprometer a dinâmica ventilatória e sua drenagem pode ser de grande valor quando a ventilação mecânica parece ter chegado ao limite de seus recursos.
- A sedação também deve ser avaliada com cautela. Pacientes cirróticos tem o metabolismo medicamentoso comprometido e, portanto, tendem a recircular os sedativos (o que aumenta dias de ventilação, dias de UTI e risco de complicações). Não há contraindicações, mas é prudente selecionar drogas com meia-vida mais curta e ajustar as doses ao mínimo necessário.
Lesão renal aguda
Ao contrário da insuficiência hepática, a insuficiência renal tem um grande arquivo de evidências no cenário de cuidados intensivos. A lesão renal aguda (LRA) é comum nas UTI e, por si só, é um fator de risco para mortalidade em pacientes críticos.
Em pacientes sob VM, tanto os pulmões afetam a função dos rins quanto vice-versa. Uma vez que o rim é um órgão sensível à isquemia, a falência circulatória induzida pela VM, conforme ocorre com o sistema cardiovascular, leva a hipoperfusão renal significativa. A ativação humoral resultante do sistema renina-angiotensina aldosterona e do ADH também contribui para redução do volume urinário. Por fim, há evidências sólidas mostrando que citocinas inflamatórias (abundantes em pacientes com SARA) levam a lesão renal direta por apoptose.
Ou seja, fica claro o porque da LRA ser tão comum em pacientes com quadros respiratórios graves. E, uma vez que essa disfunção orgânica se instala, a ventilação se torna bem mais complicada.
A sobrecarga volumétrica habitual em pacientes com LRA, especialmente nos dialíticos, é um grave complicador da SARA, uma vez que qualquer retenção hídrica piora o edema pulmonar e a troca gasosa. Além disso, outras pesquisas mostram que alterações moleculares pulmonares desencadeadas pela própria disfunção renal aumentam a permeabilidade da membrana alvéolo-capilar, piorando ainda mais o quadro.
Além disso, o risco de distúrbios ácido-básicos mais uma vez se torna um problema. Se o paciente evoluir com alcalose metabólica, essa pode ser facilmente corrigida com redução da frequência respiratória (FR) do ventilador (aproveitando-se da hipercapnia permissiva da ventilação protetora).
Se ocorrer acidose metabólica, no entanto, a hipercapnia deverá ser descartada a fim de evitar o risco iminente de parada cardiorrespiratória associado a acidose grave. Algumas recomendações a serem seguidas são as seguintes:
Pacientes com acidose metabólica leve (pH > 7,15):
- Aumentar a FR da VM até no máximo 35 irpm, objetivando pH > 7,30 ou PaCO2 < 25 mmHg;
- Se, mesmo após aumentar a FR até 35 irpm ou a PaCO2 estiver menor que 25 mmHg, a acidose persistir, deve-se considerar infusão de bicarbonato.
Pacientes com acidose metabólica grave (pH < 7,15):
- Aumentar a FR até 35 irpm;
- Se não houver melhora satisfatória com o ajuste ventilatório, considerar infusão de bicarbonato;
- Se mesmo após FR de 35 irpm e infusão de bicarbonato a acidose persistir, deve-se aumentar o volume corrente em 1 mg/kg por vez e reavaliar o pH a cada ajuste. O objetivo aqui é chegar em pH maior ou igual a 7,15 (não 7,30) e é importante notar que a pressão de pico pode ultrapassar o limite desejado com essa estratégia.
A terapia de substituição renal pode ser necessária, especialmente para o controle de volume e da acidose refratários às demais medidas clínicas.
Leia mais: Quando realizar a ventilação prona em emergências?
Conclusão
A VM, apesar de tão amplamente usada, ainda é um desafio mesmo para os médicos habituados a seu manejo. Em situações graves como SARA e, mais ainda, em pacientes portadores de comorbidades, o desafio torna-se ainda maior.
É importante notar que todas as estratégias citadas acima tentam, ao máximo, preservar os parâmetros da ventilação protetora. Porém, conforme o quadro clínico se agrava e comorbidades descompensam, pode ser necessário quebrar essas regras pesando-se riscos e benefícios.
Além disso, no estado atual de pandemia pela Covid-19, novas particularidades da doença podem ser descobertas a longo do tempo e, com elas, as orientações podem ser futuramente alteradas. O bom julgamento clínico e a busca por informação continuam, portanto, sendo a melhor arma que o médico pode ter em suas mãos.
Autor:
Graduado em Medicina pela Universidade Federal de Uberlândia ⦁ Residência Médica em Clínica Médica de 2017-2018 pelo Hospital das Clínicas da UFU ⦁ Médico diarista da Enfermaria de Clínica Médica do Hospital e Maternidade Municipal Dr. Odelmo Leão Carneiro e médico plantonista do pronto-socorro e sala de emergências de Clínica Médica do HC-UFU ⦁ Coordenador de conteúdo do site MeuCérebro e mentor na plataforma MyBrain University
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