São Paulo e Rio — Num momento em que a inflação está fora da lista de dores de cabeça do brasileiro, planos de saúde, empresas e usuários enfrentaram mais um ano de escalada nos custos de exames, consultas, internações e insumos.
Um estudo da consultoria global Aon estima que o Brasil deve fechar este ano com a chamada inflação médica — que apura a variação dos preços no setor de saúde — em 17%.
A taxa é cinco vezes o IPCA, que mede a inflação em toda a economia e deve ficar em 3,4% em 2019. O estudo faz projeções para outros cem países, e os dados mostram que o Brasil é o quarto país no mundo com a maior distorção na inflação da saúde.
Só fica atrás de Costa do Marfim, Uganda e Malásia.
“O descolamento da inflação médica da geral no Brasil é o maior entre as grandes economias”, diz Rafaella Matioli, diretora da Aon no Brasil.
Essa distorção tem se repetido há anos e deve continuar em 2020. A previsão da consultoria é de inflação médica de 15% no país no ano que vem para um índice geral de 4,1% previsto pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
As empresas de saúde privada atribuem a persistência de uma inflação médica de dois dígitos a dois fatores principais: o envelhecimento da população, que demanda mais procedimentos, e a incorporação de novas tecnologias.
As operadoras têm repetido esse diagnóstico para defender mudanças nas regras do setor, incluindo menos obrigações e mais liberdade para repassar a alta dos custos para as mensalidades.
Especialistas concordam que as causas listadas pelas empresas, enfrentados em todo o mundo, estão por trás da escalada da inflação médica no Brasil, mas apontam falhas na operação dos planos que também aumentam os custos.
Um dos problemas é a forma de remunerar hospitais e clínicas que atendem os segurados. Os prestadores do serviço recebem por procedimento, não por paciente.
As operadoras dizem que isso incentiva procedimentos além do necessário e deixam para elas pouca margem para evitar o repasse do custo para as mensalidades.
Os prestadores de serviço, porém, dizem que a culpa não é deles. Apontam a falta de medidas simples na gestão do sistema, como a criação de protocolos claros para a prescrição de exames por médicos e o compartilhamento de informações dos pacientes entre os profissionais.
Hoje, quem muda de cardiologista, por exemplo, tende a receber do novo médico pedidos de uma série de exames que já fez.
Um estudo recente encomendado pela Associação Nacional dos Hospitais Privados (Anahp), baseado em dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), concluiu que o custo de atendimento de seus associados subiu, em média, 6,7% ao ano entre 2013 e 2018, taxa próxima à média do IPCA no período, de 6%.
O cálculo foi feito sem considerar a frequência do uso, mostrando que o excesso de procedimentos tem forte impacto no custo final dos planos.
“O estudo mostra que é preciso uma mudança de todos os envolvidos para conter a frequência de utilização. Médicos precisam de maior grau de padronização para pedidos de exames, prestadoras têm que mudar o modelo de pagamento e operadoras devem ampliar a capacidade de gestão. Todos alinhados com maior integração de informação para tornar o serviço melhor e mais eficiente”, diz Henrique Neves, presidente da Anahp, que vê o compartilhamento do risco dos pacientes entre planos e hospitais como algo que poderia ser feito para incentivar a prevenção.
Suécia dá bom exemplo
Na ponta oposta do levantamento da Aon, os países com menor distorção na inflação médica têm em comum o foco na atenção primária, com modelos baseados em ambulatórios e médicos de família.
A lógica é concentrar o histórico dos pacientes, incluindo seu estilo de vida, para prevenir doenças ou acelerar diagnósticos se elas surgirem.
A Suécia é a campeã nessa área. A inflação médica lá este ano deve ficar exatamente igual à de toda a economia. O país adotou uma lógica diferente de remuneração de serviços médicos para lidar com a combinação de inovação médica e envelhecimento.
Lá, hospitais, clínicas e laboratórios são pagos pelo número de pacientes atendidos, num modelo de pacote fechado. A ideia é estimular ganhos de eficiência, evitando a repetição de exames ou internações por mais tempo que o necessário.
Japão e França também fazem isso, mas dividem mais os custos dos serviços com os segurados para coibir o uso desnecessário. Na Austrália, um conselho com representantes do governo central e dos estados reúne-se periodicamente com operadoras e prestadores de serviço.
Na pauta, entram orientações sobre remédios e procedimentos médicos com melhor custo-benefício para serem incorporados às redes públicas e particulares do país. O resultado: os custos da saúde devem fechar 2019 com alta de 3,8%, pouco acima da inflação do país, de 2,4%.
“A atenção primária pode cumprir vários papéis muito importantes na melhoria da saúde e no aumento da eficiência de todo o sistema. No Brasil, estamos envelhecendo muito mal, o que torna isso ainda mais importante”, diz o economista Rudi Rocha, professor da Fundação Getulio Vargas e coordenador de pesquisa do Instituto de Estudos para Política de Saúde (IEPS).
impacto no setor público
O médico Ricardo Ramos, presidente do conselho da Aliança para a Saúde Populacional, ONG que reúne empresas com estratégias para racionalizar o uso dos planos, avalia que o Brasil não conseguirá conter os custos do setor sem trocar o atual modelo baseado no tratamento pelo de acompanhamento para prevenir doenças:
“O Brasil faz parte da tendência global de alta da expectativa de vida, que traz consigo doenças crônicas associadas à velhice e ao sedentarismo, como diabetes, hipertensão, cardiopatia e obesidade”.
Irene Minikovski Hahn, presidente da Qualirede, empresa especializada em gestão de saúde que presta serviço para diferentes operadoras, diz que já existem iniciativas no Brasil capazes de reduzir em até 30% o custo por usuário com maior controle na ponta:
“Numa carteira de 50 mil beneficiários para os quais fazemos a gestão completa da saúde, da porta de entrada ao desfecho clínico, a inflação ficou em torno de 5% ao ano”.
O mais difícil de controlar é mesmo a questão tecnológica. Novos equipamentos na área médica quase nunca substituem tecnologias anteriores. Um tomógrafo convive com um aparelho de raios-X, não o aposenta. Isso exige investimento alto e constante e o dólar alto agrava ainda mais esse custo, pondera Carlos Alfredo Lobo Jasmin, diretor da Associação Médica Brasileira:
“O problema é que boa parte dessas inovações são importadas e altamente tributadas, daí que o aumento dos custos é mais agudo por aqui”.
A inflação médica também reflete a alta nos custos do Sistema Único de Saúde (SUS) na compra de equipamentos e insumos. Ainda dificulta a retenção de bons profissionais com maior remuneração no setor privado, diz Rudi Rocha. E, se os planos encarecem, mais gente busca a rede pública.
Por outro lado, o SUS contribui indiretamente para a alta dos custos da saúde privada ao atender segurados em emergências e repassar a conta aos planos, observa Fabiana Salles, presidente da corretora de seguros de saúde Gesto.
Fonte:
Exame