Um corpo de mulher é encontrado em um apartamento: a equipe chega, cerca o local, recolhe com pinça objetos no entorno para tentar identificar digitais e os guarda em sacos especiais, usa uma luz especial para enxergar possíveis rastros de esperma, verifica pegadas, conversa com os vizinhos. Emocionante, não? Cena digna dos melhores seriados de investigação policial? E para por aí: isso não é psiquiatria forense.
“Há muita romantização e fetiches nessas cenas, que misturam as funções do psiquiatra forense às de um legista, por exemplo. A vida real é totalmente oposta à apresentada nos seriados”, afirma a Dra. Jacqueline Segre, psiquiatra forense e uma das responsáveis pela pós-graduação na área oferecida pela Universidade de São Paulo. “E mais, em tese, toda psiquiatria é forense, visto que todos os psiquiatras se deparam com questões que podem tangenciar questões jurídicas e éticas”, diz. “Forense” é aquilo relativo ao foro, tribunais e à justiça.
Então, quais as atribuições da psiquiatria forense?
De assassinato a impasses familiares
O profissional que se especializa na área pode atuar, sim, no âmbito criminal, mas não com as fantasias apresentadas pela televisão. “Sobre o homem que esfaqueou o presidente Jair Bolsonaro, por exemplo: muitos na mídia aventaram a possibilidade de ele ter alguma doença mental, então, em um caso desses, somos acionados para avaliar esse indivíduo. Até porque não basta ele ter a doença, ou todos os doentes teriam algo como uma ‘carta branca’ para cometer crimes. Precisamos mostrar se há correlação entre a condição da pessoa – se é que existe a condição – ao crime cometido”, afirma Dra. Jacqueline.
Além do conhecimento médico, é preciso que este tipo de psiquiatra conheça também os meandros do Direito: “Para mostrar se a patologia do criminoso tem alguma relação com o delito que ele cometeu, temos que elucidar uma questão jurídica, então é preciso ter um linguajar médico mais acessível aos operadores de Direito – juízes, advogados. Fazemos uma transcrição de nossas observações, mas praticamente ‘traduzimos’ os aspectos mais técnicos”, completa.
A psiquiatria forense pode, também, atuar na área previdenciária, quando, por exemplo, uma pessoa alega que não consegue mais trabalhar por ter certa doença, como depressão. O profissional, então, averigua para confirmar ou não a condição – a confirmação propicia que a pessoa receba uma aposentadoria, por exemplo. Casos mais complexos, como os de indivíduos que processam o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), exigem o crivo do psiquiatra forense.
Na área de família, a especialidade pode averiguar impasses sobre a guarda dos filhos quando for alegada a impossibilidade de uma das partes ter a guarda compartilhada, devido à possível doença mental, entre outros. Já na civil, testamentos podem ser cancelados se for comprovada a não capacidade da pessoa muito idosa, por exemplo. “Há casos de perícias indiretas, em que somos chamados depois que a pessoa já faleceu porque seu testamento foi considerado indevido por alguns dos parentes. Para esse estudo, precisamos verificar documentos médicos, históricos, prontuários e entrevistar parentes para conseguirmos comprovar ou não a condição do falecido na época da elaboração do testamento”, diz Dra. Jacqueline.
O peso da ética
Os dilemas éticos estão sempre presentes: pode-se internar paciente com problema mental contra a vontade dele, passando por cima de sua autonomia? Há, também, o lado do médico: até onde ele pode ir; até onde, como autoridade médica, pode impor seu conhecimento?
“Atuamos sob a Lei nº 10.216 de 6 de abril de 2001, também conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, que determina as internações involuntárias. Um paciente com risco de suicídio, que tem problema mental e câncer, mas se recusa a passar por uma cirurgia para tratar o câncer, deve ter a vontade respeitada? Ele tem condições de responder por si? Nesses casos, somos chamados a averiguar”, afirma.
Ela explica que as situações são, por vezes, profundas e até filosóficas, mas que a perícia tem que ser categórica, na medida do possível: “A resposta que temos que dar ao juiz é ‘sim’ ou ‘não’, é algo quase binário muitas vezes. Então temos que aprender a lidar com todas as complexidades e ir traduzindo-as, é como uma habilidade que você vai aprimorando com os anos de profissão”, reconhece Dra. Jacqueline.
A psiquiatria forense, portanto, flerta com as áreas do Direito e conhece suas terminologias – não todas as leis, especificamente. Um pouco mais humanizada, ela tenta ver algo além do simples transtorno mental para transmitir da forma mais inteligível os acontecimentos, as situações limítrofes. “Como podemos criar um raciocínio um pouco mais saudável do que mimetizar um bom senso? Este é nosso treinamento diário”, completa a professora.
Área possível a todos os médicos
A psiquiatria forense é uma especialidade nova; tem cerca de dez anos no Brasil. De fato, é uma subespecialidade da psiquiatria, como são a infantil e a psicogeriátrica, entre outras.
“A área não tem muitos centros de especialização; o interessado pode cumprir três anos de residência em psiquiatria e, em seguida, prestar nova prova para o R4 para a forense. No complexo todo do HC, até 2018, era apenas uma vaga por ano; a partir de 2019, são duas”, diz Dra. Jacqueline.
Há, também, o curso de pós-graduação – o indivíduo formado em Medicina pode cursá-lo para se tornar um especialista em psiquiatria forense.
A Escola de Educação Permanente do HC oferece a especialização na área – em 2019, ela passa a ter duração de dois anos, e não um, como era até então. O curso exige TCC e oferece atividade prática em perícias, e os alunos que anteriormente o cursaram em um ano podem agora completar os estudos com este segundo e tornarem-se especialistas.
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