Um hepatograma é um conjunto de exames bioquímicos do soro humano que permite avaliar a presença ou não de doença hepática, determinar o tipo de doença hepática, graduar a gravidade do insulto e acompanhar a resposta da doença ao tratamento. No entanto, no sentido de determinar o tipo de doença hepática, o hepatograma o faz de maneira bastante genérica, dividindo classicamente as doenças em em hepatocelulares e colestáticas, ou uma combinação de ambas. O interessante é que cada um desses exames isoladamente é de pouca utilidade: a interpretação do resultado se dá em cima do “conjunto da obra”.
Exames que avaliam a função excretora e de desintoxicação do fígado
A bilirrubina (BB) é um produto da degradação da hemoglobina que é divida em dois tipos, a indireta e a direta. A primeira é insolúvel em água e, portanto, é transportada na circulação ligada à albumina e não é passível de filtração pelo rim. Por isso o nome bilirrubina indireta ou bilirrubina não-conjugada. Posteriormente esta BB é processada pelo fígado, que torna a molécula hidrossolúvel. Esta é a BB direta que é excretada pelos rins, que dá a cor amarelada à urina.
Sabendo que a BB indireta é uma excreta oriunda do primeiro processo de quebra da molécula de hemoglobina, percebe-se que níveis elevados dela no soro estão associados principalmente à hemólise, raramente a algumas síndromes genéticas clássicas (síndrome de Crigler-Najjar, síndrome de Gilbert) e praticamente nunca à doença do fígado. Portanto, diante um paciente com hiperbilirrubinemia, sendo que a fração direta é menor que 15% do total, é mandatório investigar hemólise. Caso os exames não consigam identificar a presença de hemólise, é sabido que o paciente é portador da síndrome de Gilbert, sem haver necessidade de mais nenhuma investigação adicional.
Por um outro lado, uma hiperbilirrubinemia com predomínio (>15%) da fração direta sugere doença do fígado ou da via biliar. No entanto, vale notar que grande parte das doenças hepáticas, sejam elas colestáticas ou não, cursam com algum grau de elevação das BBs, pois o transporte da BB para o sistema biliar é prejudicado. Em algumas situações o valor da BB sérica possui valor prognóstico. O Model for End-Stage Liver Disease, mais conhecido como MELD, requer a mensuração das BBs para que o escore possa ser calculado.
O fígado frequentemente é comparado a um sofisticado laboratório químico, dada a complexidade das diversas funções bioquímicas que este órgão realiza. Não é de se surpreender então que o fígado possua inúmeras enzimas. Como estamos falando de substâncias intracelulares, é de se esperar que insultos ao fígado produzam elevações mensuráveis dessas enzimas, já que normalmente os níveis destas são normalmente baixos. Sabendo a função e localização histológica dessas enzimas, podemos identificar aquelas que refletem lesão aos hepatócitos, as associadas à colestase e as que não possuem qualquer padrão específico.
As aminotransferases (ou transaminases) são usadas na identificação das lesões hepatocelulares agudas, i.e., hepatites. São elas a aspartato aminotransferase (AST; também conhecida como transaminase glutâmico oxalacética [TGO]) e a alanina aminotransferase (ALT; ou transaminase glutâmico pirúvica [TGP]). A AST é expressa pelo fígado e outros órgãos, enquanto a ALT é encontrada somente no fígado. A correlação entre os níveis séricos dessas enzimas e o grau de lesão hepática é pouco confiável nas hepatites agudas. As elevações moderadas das enzimas possui pouco significado clínico; no entanto, diante de níveis acima de 1.000 UI/L podemos ter praticamente certeza da existência de alguma causa subjacente, tais como hepatite viral, doença isquêmica do órgão ou hepatite induzida por droga/toxina. A relação entre AST e ALT possui uma utilidade peculiar: uma relação AST/ALT maior do que 2 sugere uma etiologia alcoólica, e uma relação maior que 3 é muito sugestiva para isto. Mais ainda, nessas situações o nível de AST raramente é inferior a 300 UI/L, enquanto a ALT se mostra inalterada. As enzimas raramente se elevam num caso de colestase.
Por sua vez algumas enzimas quando elevadas refletem colestase. É o caso da fosfatase alcalina (FAL) e da gama-glutamil transferase (GGT). Mais uma vez, essas enzimas isoladamente não são tão específicas para obstrução biliar. Níveis elevados da FAL podem, por exemplo, serem causados por distúrbios ósseos. Mais ainda, qualquer doença hepática pode causar aumentos de até 3x o valor normal da FAL sérica. Por isso, uma FAL e uma GGT séricas concomitantemente aumentadas são muito mais precisas na identificação de uma doença colestática.
Exames que avaliam a função de síntese pelo fígado
A albumina é a principal proteína do soro humano, é sintetizada exclusivamente pelo fígado e possui uma meia vida de 18 a 20 dias. Por isso, as hepatites agudas não são capazes de provocar quedas consideráveis da albumina sérica; nestes casos (albumina menor que 3 g/dL), deve-se pensar em doenças crônicas do fígado. Devemos, porém, ressaltar alguns detalhes: desnutrição também pode causar hipoalbuminemia, seja por ingesta inadequada, por espoliação de proteína(ex: síndrome nefrótica, síndromes disabsortivas) ou estados em que há grande quantidade de citocinas circulantes por períodos prolongados (Ex: queimados, câncer); em casos de ascite a albumina pode estar baixa, mas não porque a produção está baixa, mas sim por maior distribuição da proteína em outros compartimentos do corpo (especialmente cavidade peritoneal) que não o espaço intravascular.
Todos os fatores da cascata de coagulação, exceto pelo Fator VIII, são produzidos no fígado. A meia vida desses fatores é bem mais curta do que a da albumina: elas estão entre 6 horas e 5 dias, dependendo do fator. Por isso, são de grande importância na determinação do prognóstico das hepatites agudas. O INR estimado através do TAP também faz parte do MELD.
Exames que não fazem parte do hepatograma
A biópsia hepática é um exame que pode ser feito à beira do leito com anestesia local e guiado por ultrassom. Ela é geralmente usada como último recurso, quando não se foi possível determinar a etiologia da doença hepática através de outros exames menos invasivos. A biópsia apresenta melhor rendimento nos casos em que há doença hepática difusa.
A ultrassonografia permite observar diversas lesões tanto no fígado (massas, nódulos, cistos…) quando no sistema biliar (dilatações, obstruções, cálculos…). O uso do Doppler permite avaliar os diversos vasos do fígado; isto é especialmente útil na suspeita de síndrome de Budd-Chiari.
Fonte: Pratt DS. Evaluation of Liver Function. In: Kasper D, Fauci A, Hauser S, Longo D, Jameson J, Loscalzo J. eds. Harrison’s Principles of Internal Medicine, 19e New York, NY: McGraw-Hill; 2014.